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Georgete Moreira dos Santos

1957 - 2021

Vó Jó foi tão parceira, que fez questão de prestigiar toda uma saga de super-heróis no cinema, só para agradar os netos.

Esta é uma carta aberta da filha Camila para sua mãe, Georgete:

Minha mãe poderia ser representada em duas palavras: generosidade e amor. O que ainda é muito pouco, porque ela foi um oceano de bondade. Sempre disposta a ajudar, aconselhar e ser um ombro amigo.

Ela trabalhava em uma loja de tecidos quando foi demitida e passou a trabalhar como diarista. Nessa época, nós estudávamos em escola pública. Como estava desempregada, além das faxinas, também fazia lanches para vender. Era uma forma de ajudar meu pai nas economias da casa. Depois ela começou a trabalhar na escola onde eu, meus irmãos e meus primos estudávamos e lá ficou durante vinte anos, até falecer. Ela começou como parceira na cozinha e gostaram tanto da comida, que ela foi contratada como terceirizada. Na escola, todos os alunos e professores tinham um carinho especial por ela. Como a escola é de bairro, minha mãe era conhecida no bairro inteiro como Tia Jó. E para meus sobrinhos ela era a Vó Jó.

Minha mãe tratava as crianças da escola - e as que frequentavam a nossa casa - como filhos. Uma avó "de filme", que mimava os netos biológicos e os postiços. Como era gordinha, meus sobrinhos diziam que ela continha tanto amor, que não cabia no coração e se espalhava pelo corpo todo.

Ela gostava de cozinhar e tudo o que fazia ficava uma delícia porque cozinhava com o coração. A farofa era uma coisa surpreendente. Todos em casa e na escola queriam saber o segredo. Ela só usava cebola... Bastante cebola! Já tentei reproduzir, mas o gosto não fica igual.

Minha mãe trabalhava fora quando éramos pequenos e por isso, nos finais de semana, fazia pães, sobremesas e lanches como forma de economizar e também compensar o fato de não poder estar mais presente. Com a chegada dos netos, ela fazia tudo o que eles mais gostavam. Então, nos finais de semana em que eles estavam aqui em casa era certo que ia ter brigadeirão, carne assada ou panqueca, feijão e farofa.

Meu pai faleceu em 2008. Meus pais foram casados durante trinta e cinco anos, mais ou menos, e o foco deles sempre foi que nós estudássemos, mesmo não tendo muitas condições. Graças ao esforço deles, eu hoje sou advogada, minha irmã é contadora e meu irmão trabalha com tecnologia da informação.

Formamos uma família unida, somos muito ligados. Como meu irmão Vinicius mora longe, todo dia minha mãe mandava mensagem dando "bom dia" dizendo que o amava. Minha irmã Lidiane mora ao lado, então todo dia ela a chamava para o café da manhã. Quando a Lidiane não vinha, minha mãe brigava. À tarde, ela levava café para a minha irmã. Eu morava com a minha mãe, então todo dia ela perguntava se já tinha dito que me amava e o que eu queria almoçar. Também não passava um dia sem que ela ligasse para os netos para saber como estavam.

Minha mãe tinha mania de limpeza. Acordava cedo para limpar logo o quintal e, se deixasse, lavava roupa todo dia e acabava com a água da caixa. Outra mania era ir ao mercadinho todo santo dia.

Ela gostava de ir a igreja e quando precisavam de ajuda por lá ela sempre escolhia cozinhar. Sempre frequentou os cultos e, por causa da pandemia, ela os assistia online, deixando para ir só nos dias de Santa Ceia.

Minha mãe também amava passear e seu passeio favorito era ir ao restaurante. Tem uma coisa curiosa: minha mãe não gostava de barcos e tinha medo de altura. Mas amou viajar de avião pela primeira vez.

Quando eu dei um celular de presente, ela descobriu o Facebook e passava horas entretida na rede social, até a gente brigar. E quando a gente falava que ela estava há muito tempo no celular, ela sempre respondia que tinha acabado de pegar o aparelho. Depois foi Instagram. E todo mês ela pedia que eu pagasse as contas pelo aplicativo do banco.

Minha mãe sempre almoçava na hora do Jornal Hoje e ficava elogiando a Maju. Era louca por uma novela, mas não tinha muita paciência para séries. A única que ela assistiu do começo ao fim foi "Anne With an E". Filmes ela assistia esporadicamente, mas só ia ao cinema por causa dos netos. Por isso, assistiu toda a saga dos Vingadores e outros filmes da Marvel.

Os netos nasceram logo após o falecimento do meu pai e da minha avó materna. Os netos criaram um outro espaço no coração da minha mãe. Eles eram tudo para ela! Aquele amor de avó que a gente vê nos filmes. Ela sempre fazia as vontades deles. Já ligava na quinta-feira para saber o que gostariam de comer no final de semana e nunca brigava com eles. Se fosse preciso, reclamava comigo e eu brigava. E os netos sempre foram muito ligados a ela, agarrados mesmo.

No aniversário, minha mãe sempre escolhia bolo de chocolate só por causa dos netos, mesmo não gostando. Se falassem que queriam comer determinada coisa, no dia seguinte ela providenciava. As crianças diziam que a casa era a "Creche da Vó Jó", porque nas férias e nos feriados prolongados juntavam-se aqui os gêmeos, Gean e Gabriel — que são os netos —, com as duas filhas do meu primo, que também chamavam ela de vó. O apelido Vó Jó surgiu de Georgete, que as crianças não conseguiam falar, porque era difícil. O primeiro neto que nasceu chamou de Vó Jó e os outros acompanharam.

Minha mãe e minha tia eram muito próximas. Ambas tiveram três filhos, nascidos na mesma época, por isso nós temos idade parecida. Uma tratava os filhos da outra como se fossem os próprios. Como minha mãe trabalhava fora, era minha tia quem ia na reunião de pais. Então é como se fôssemos seis irmãos. Agora cinco, porque meu primo mais novo, Rodrigo Moreira Torres, também faleceu de Covid-19. Assim como minha tia querida, que também nos deixou dias antes.

Ela era uma boa ouvinte. Sempre que alguém vinha angustiado ou preocupado para conversar com ela — ou quando eu estava ansiosa —, ela dizia para orar ao Senhor e pedir para que fosse feita a vontade Dele. Até minhas amigas vinham se aconselhar com ela. Eu brincava que ela tinha tantos filhos, que se viessem pedir pensão ia "dar ruim" para o lado dela! Ela sempre repetia uma frase: "A vontade de Deus é sempre boa, perfeita e agradável."

Quando alguém estava passando necessidade, ela pegava o alimento daqui de casa e montava uma cesta básica. Ela dizia que aqui em casa tinha tudo, menos dinheiro, mas que se precisasse ela dava também. Com frequência ela separava roupas para doar. Eram coisas pequenas, mas de alguma forma ela ajudou muita gente.

Quando ela partiu, um amigo de infância contou que tinha sido muito por causa da minha mãe que se tornara engenheiro. Ela era muito amiga da mãe dele. Ele fazia um curso bem distante, precisava almoçar antes de ir, mas não tinha dinheiro. Ele tinha vergonha de almoçar na escola, então minha mãe separava a comida e o chamava para almoçar, depois que todos já haviam entrado para a sala de aula. Ela fez isso até ele se formar. Ela era assim, fazia o bem sem nenhum esforço, nem esperar nada em troca.

Minha mãe deixou uma herança muito valiosa: ser generoso com o próximo, ter empatia e se colocar no lugar do outro, sempre!

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Esta é uma carta aberta da filha Lidiane para sua amada mãe, Georgete:

"O melhor abraço do mundo era o dela…
Dentro do abraço, você se sentia em paz, não tinha medo de nada."

Georgete era uma mulher batalhadora e forte. Desde cedo começou a trabalhar, para ajudar a mãe em casa e comprar suas coisinhas. Mais tarde, como merendeira numa escola pública, fazia muito mais do que comidas saborosas, ofício que desempenhava com amor: cuidava e aconselhava cada jovem que passava por ela. Entre um prato de merenda e outro, um puxão de orelha, um conselho, um carinho.

Solidária, participava ativamente dos projetos da igreja, onde a cozinha ficava sob sua responsabilidade. Ela cozinhava de tudo: doces, salgados, e ficava feliz em ver a família reunida em volta de uma mesa farta e com muita alegria.

Georgete teve três filhos, Lidiane, Camila e Vinícius, de seu casamento com Edson, falecido há treze anos e com quem dividiu sua vida por trinta e cinco primaveras. Ambos se esforçaram para dar aos filhos o melhor estudo, as melhores condições de vida e, a despeito de todas as dificuldades, sempre incentivá-los a estudar, a acreditar que sonhos podem se realizar com empenho e a fazer tudo com excelência e amor.

Georgete foi amiga dos filhos, e dos amigos que conquistou desde a infância, na escola e no trabalho. Quando partiu, foram muitas as mensagens lindas que recebeu de todos que a conheceram. Tanto os amigos do Facebook do bairro, quanto aqueles que, em algum momento de suas vidas foram aconselhados por ela, fizeram questão de a homenagear.

A Jó, como foi apelidada desde novinha, foi mãe de muitos e era o amor em pessoa. O amor dos filhos — Lidiane, Camila e Vinícius —, dos netos, Gean e Gabriel, e de todos os que cruzaram seu caminho.

"Não há um dia em que eu não sinta falta dela", conta Lidiane. “Ela vive em mim e nos meus irmãos.”

Georgete nasceu em Duque de Caxias (RJ) e faleceu em Duque de Caxias (RJ), aos 64 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Georgete, Camila Moreira dos Santos. Este tributo foi apurado por Marina Teixeira Marques, editado por Ana Macarini e Rosa Osana, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 22 de junho de 2021.