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Geralda Bruno da Silva

1927 - 2020

Uma sábia mineira nonagenária que foi agricultora, parteira, dona de casa, costureira e tocadora de gaita.

Dona Geralda. Uma preciosidade, daquelas encontradas nas jazidas minerais do Vale do Jequitinhonha, nas Minas Gerais. Sua origem é Itamarandiba, cidade que muito amava, cantada em verso por Milton Nascimento nos anos 80.

Pouco se sabe de sua infância. Nasceu numa família com pouquíssimos recursos, a ponto de seus pais a entregarem para dona Joana, que a criou como filha, muito embora não no mesmo pé de igualdade que os filhos legítimos, pois cabia a Geraldinha a maior parte do trabalho da casa. No entanto, isso não foi motivo para diminuir a gratidão que demonstrava pela família adotiva.

Aos 15 anos, teve um casamento “arranjado” ─ coisas daqueles tempos. Ela não queria muito, mas já que ia ter que se casar mesmo, aceitou. Ele, José Tavares da Silva, era viúvo, quase vinte anos mais velho do que ela, e fumava bastante. Conforme foi envelhecendo, começou a ter problemas de saúde. Aos 70, o médico avisou que, caso não cortasse o vício, não sobreviveria por muito tempo. Duro na queda e determinado, parou de fumar e viveu até os 100 anos. Ficaram juntos por sessenta e quatro anos. Ele com seu jeitão patriarcal, sério, e ela, com seu espírito mais livre, querendo ir a um forró e visitar os amigos nas redondezas.

Logo que se casaram, foram morar numa fazenda em uma região de pouca infraestrutura, onde ficaram por muitos anos. Nessa época, foi parteira de praticamente todas as crianças que nasceram por ali. Sempre que alguém ia “ganhar menino”, chegava um cavalo buscando por Geralda para, com seu ancestral conhecimento e suas mãos habilidosas, trazer os nascituros à luz da vida nas casas da comunidade.

Era dessa época um dos “causos” que contava: debaixo de uma chuva forte, saiu na escuridão da madrugada, deixando os filhos em casa para cumprir a função. Depois de andar por quilômetros, passar horas intensas durante o trabalho de parto e ter certeza de que mãe e recém-nascido estavam bem, voltou para enfrentar mais um dia de trabalho na plantação.

Depois de muitos anos, mudaram para Belo Horizonte. Ao longo da vida, o casal teve treze filhos: José, Rosa, Maria Efigênia, Elena Pereira, Terezinha Daluz, Augusto Pereira, Juvenal Aparecido, Valdivino Pereira, Maria Luiza, Iolanda Silva, Maria da Consolação, Alercio e Antônio Pereira. Formaram uma família que hoje conta com dezenas de netos, bisnetos e até alguns tataranetos. Muito amorosa, sempre que podia, vó Geralda viajava até a casa dos filhos e, como gostava de circular, ficava um pouquinho na casa de cada um.

Era carinhosa, porém de temperamento forte, não gostava de ser contrariada. Para ela, a experiência conquistada durante a longevidade tinha valor, prezava ser ouvida. Dava bons conselhos. Apoiava os sonhos e as conquistas dos que estavam ao redor.

Amava todo ser vivo, todos os bichos, especialmente a cachorrinha Mel, uma grande companheira. Amiga de todo mundo, costumava dizer que “não punha reparo” nas pessoas, não importava quem fosse, acolhia indistintamente.

Tocava gaita com maestria e cantava músicas religiosas de sua época. Mas também adorava animar um forró em parceria com José Vagi na sanfona.

Em seus últimos tempos, sua rotina começava cedinho com a missa que assistia diariamente. Depois, ocupava-se costurando a mão tapetinhos com retalhos que recolhia entre os familiares. De segunda a sábado, até as 16 horas, enquanto brilhava a luz do dia que a ajudava a enxergar melhor, estava sempre com agulha e linha na mão e desfiando fitas. Menos aos domingos, por promessa: teve um problema nos olhos e o médico quis operar, mas preferiu apelar para Santa Luzia, a santa que rege a visão, prometendo que o domingo seria sagrado. Curou-se.

Mulher de fé, nos momentos difíceis dizia que uma boa reza era a melhor solução. Pedia a Deus em prol de todos, todos da sua geração e das gerações anteriores e futuras. Assim era, generosa, e tinha tanta sabedoria para viver o melhor a cada momento que não sentia medo da morte. Dizia estar pronta para quando chegasse sua hora. Conquistou o coração de todos que conheceu, inclusive no hospital, levando toda a equipe médica a se apaixonar por ela. No último dia de vida, cantou para Santa Clara.

Geralda nasceu em Itamarandiba (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG), aos 92 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Geralda, Ana Clara Alves Silva. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Bettina Turner, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 3 de fevereiro de 2021.