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Geralda Inês de Souza Almeida

1955 - 2020

Assentada na mesa da copa, observava a rotina da casa e, com uma gargalhada inconfundível, ria do engraçado.

Dona Geralda era a doçura em forma de gente. Uma mulher serena, tranquila, paciente e acolhedora. Encontrá-la de mau humor era praticamente impossível. Ao contrário, quem chegava era sempre recebido com alegria expressa em um sorriso no rosto.

Vizinha prestativa, Geralda era procurada por muita gente da redondeza para uma boa prosa. Se o caso fosse de ajuda, ela logo manifestava disposição em colaborar. Para as visitas, tinha sempre um cafezinho feito na hora para aquecer as conversas.

Uma de suas características marcantes era o fato de sempre se preocupar em saber se quem chegava já tinha feito a refeição própria do horário. Se a resposta fosse negativa ou se percebesse que era necessário, ia logo para a cozinha preparar alguma coisa.

Isso é o que também acontecia quando seu José Antônio, companheiro de vida desde os 14 anos, chegava de suas viagens. Caminhoneiro, ele não tinha hora para voltar para casa. E independentemente da hora em que ele chegasse, Dona Geralda sempre preparava uma bela refeição. Podia ser até mesmo de madrugada. Ela se levantava e, bem-disposta, preparava uma refeição sempre fresquinha para que ele pudesse se alimentar. De outro modo, se o marido precisasse sair bem cedo para pegar a estrada, lá estava Dona Geralda preparando um saboroso café da manhã e uma marmita para que levasse consigo.

Bom dizer que a relação de quase cinquenta anos sempre foi de muita cumplicidade e companheirismo. Os filhos contam que não se recordam de brigas, pois na memória só ficaram os abraços carinhosos que eles sempre trocavam. Onde um estava, lá estava o outro. Entre as fotos da família existe uma dos dois participando de uma festa religiosa na cidade mineira de Ferros. Abraçados, na praça de uma das igrejas da cidade onde nasceram, posaram alegres para a fotografia.

Marisol e os outros dois irmãos, Sirlaine e Walisson, tiveram em Dona Geralda uma mãe dedicada e cuidadosa, que passava muita tranquilidade e segurança em todos os momentos. Saudosa, Marisol lembra o que Dona Geralda costumava dizer nos momentos em que percebia alguma aflição da parte dela: “Calma minha filha, as coisas não são assim”.

Parte do que Dona Geralda foi, ela aprendeu no convívio da família numerosa, constituída por dez irmãos e seus pais, João Basílio e Dona Senhoria. Na vida da roça, o casal era agregado de uma fazenda e vivia da agricultura. Em terras arrendadas por fazendeiros da região, plantavam de tudo um pouco para a subsistência. Desde muito pequena Dona Geralda tinha a responsabilidade de levar as refeições do pai e dos irmãos que trabalhavam na fazenda.

Dona Geralda foi a primeira filha a se casar e com o transcorrer da vida mudou-se para a cidade, onde teve os filhos que lhe deram cinco netos. Luana, Laís, Lorenna, Sarah e João Paulo, eram simplesmente apaixonados pela avó, que desde os primeiros dias de suas vidas foi muito carinhosa e presente.

Isso porque ela foi aquela avó que no nascimento dos netos levava as filhas para a sua casa e ajudava em tudo. Nos momentos de insegurança sobre como cuidar dos bebês, era Dona Geralda que, com sua calma, passava segurança com suas orientações. Agradecidas, as filhas contam que, nesta e em tantas outras situações, somente a presença da mãe era suficiente para que se sentissem tranquilas.

A mãe presente e ativa tinha o hábito de ligar para perguntar como estavam os filhos. Se algum deles ia visitá-la, recebia no portão, com seu tradicional sorriso, e com o cafezinho na mesa. Marisol relembra que depois de seu casamento, em muitos momentos, convidava a mãe para ir até a casa dela. Noutras vezes ela mesma se convidava e a filha sempre dizia “pode vir mãe, mas não precisa fazer nada aqui em casa não. Só sua presença já me faz muito bem".

Aniversários dos familiares eram uma alegria para Dona Geralda. Ela ficava ainda mais feliz com a aproximação da data de nascimento de alguém da família e ajudava a organizar as festas. Se decidissem fazer um almoço, ela assumia a cozinha e preparava o cardápio com seu tempero delicioso.

O sabor do tempero de Dona Geralda é uma das mais preciosas memórias de toda família. Juntamente com a lembrança do inconfundível e irrepetível frango com quiabo e angu e do tutu de couve, que ela preparava como ninguém. Na sobremesa não podia faltar algum doce, iguaria que ela saboreava com prazer.

Além dos doces, Dona Geralda tinha muitos outros gostos. Ficava muito alegre quando visitava a casa da mãe e dos irmãos. Não perdia a oportunidade de tirar uma foto para registrar momentos que considerava importantes. Embalava seus dias ouvindo músicas sertanejas e as notícias policiais pelo rádio.

Religiosa, sempre rezava o terço, e assistia a missas na igreja e pela televisão. Também na vertente religiosa, apreciava novelas e filmes bíblicos. Sempre que sabia da exibição de algum não perdia a oportunidade de assistir.

Uma imagem marcante na trajetória de Dona Geralda era a figura dela assentada, com o cotovelo apoiado na mesa da copa e a mão espalmada sobre o rosto. Com o olhar para os lados, muitas vezes ela passava um tempo como se estivesse pensando na vida. Noutros momentos, ficava lá observando o que se passava e prestando atenção no movimento da casa. Se algo de engraçado acontecesse, soltava uma deliciosa e inconfundível gargalhada.

Ela gostava de cultivar uma horta em sua casa ou na casa das filhas. Sempre plantava hortaliças e ervas para tempero, que colhia com a habitual felicidade. Um presente que sequer pôde usar foi dado a ela por uma das filhas. A ideia era que os vasinhos decorativos identificados com os nomes de algumas ervas, tais como cebolinha e salsinha, fossem enfeitar a janela da cozinha.

Entre as frutas, a jabuticaba era uma de suas paixões. Comia enquanto houvesse frutos para saborear. Essa paixão de Dona Geralda produziu um fato muito belo de ser contato. Sabendo do gosto da mãe, a filha Marisol decidiu plantar duas mudas da fruta no jardim de sua casa pouco tempo antes de ela adoecer. Dona Geralda ficou sabendo do acontecimento, contudo, já hospitalizada, não conseguiu fazer uma daquelas visitas à casa de Marisol para ver as mudas já plantadas. O certo é que, com apenas três meses de plantio, os dois pés ficaram carregados de flores brancas. O perfume tomou conta do jardim. E um tempo depois a colheita dos frutos foi generosa.

Dona Geralda segue viva na floração e frutificação das jabuticabeiras do jardim; nas tardes de inverno quando o sol bate na varanda de casa da filha, lugar onde ela gostava de sentar para se aquecer. No amor e lembrança das pessoas que puderam conviver com sua delicadeza e doçura.

Geralda nasceu em Ferros (MG) e faleceu em Coronel Fabriciano (MG), aos 64 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Geralda, Marisol Souza Almeida de Oliveira. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 17 de maio de 2022.