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Geraldo Paulino de Souza

1925 - 2020

Adorava fazer fogueira e reunir a meninada para contar histórias.

Geraldo gostava de morar sozinho. Depois de ficar viúvo, não quis dividir a casa com mais ninguém. Mas isso não tinha nada a ver com gostar de permanecer sozinho.

No mesmo quintal, várias construções abrigam a família – e algumas foram erguidas por ele mesmo, na época em que trabalhava como pedreiro. O ofício seria substituído mais tarde pelo de sapateiro – e pela mania de ralhar feio com quem inventasse de aparecer com calçado mal cuidado na frente dele.

Foram duas filhas, seis filhos, onze netos, treze bisnetos e três tataranetos que tiveram o privilégio de receber as broncas mais carinhosas que alguém é capaz de dar. As crianças eram a paixão do avô, cujo passatempo preferido era reunir todo mundo em volta de uma fogueira bem grande e contar histórias de assustar. Tinha saci, loira de branco e até lobisomem nos relatos que deixavam a meninada de cabelo em pé.

Mas ninguém reclamava. Ficava todo mundo bem quietinho, escutando de olhos atentos e estômago arregalado até chegar a hora de partir para as guloseimas. Bolo de fubá e tapioca de goma fresca eram as mais desejadas.

E a coisa ficava ainda melhor no período de festa junina: a disposição do vô Geraldo crescia e, com ela, o tamanho da fogueira, os contos de meter medo e o número de pratos para assustar a fome. Tinha cuscuz, milho assado, arroz doce e canjica. Vários tipos de bolo. E muita brincadeira.

A bagunça começava de tarde, com a vizinhança empenhada em fazer balão com papel de jornal e recortar bandeirinhas para enfeitar a rua. Geraldo fez fama de festeiro no Jardim Quarto Centenário, bairro paulistano que ajudou a fundar e viu crescer.

Ele chegou a São Paulo recém-casado com a prima, depois de passar dias num pau-de-arara vindo do Ceará. Foi amor de infância que durou para sempre. Quando a esposa faleceu, Geraldo não quis saber de mais ninguém. Aproveitava os dias criando formas para matar a saudade do Nordeste.

Estirava-se no banco de madeira em frente de casa para esquentar o corpo debaixo do sol. Preparava um baião de dois, com feijão de corda e queijo coalho, de dar água na boca. O mingau doce de fubá, então, era uma delícia.

E havia um segredo para a comilança não desandar o intestino de ninguém: chá de capim-santo colhido da horta que ele mesmo cuidava. Todos os dias.

Geraldo era um homem de hábitos simples, cheios de significado e repetidos com a excelência que somente a rotina permite. Até os 95 anos de idade, ajoelhava-se para orar ao acordar, antes das refeições e na hora de dormir. Deixou para a família o maior tesouro possível: a certeza de que foram todos muito amados.

Geraldo nasceu em Crato (CE) e faleceu em São Paulo (SP), aos 95 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo neto de Geraldo, Diego Maia de Souza. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Juliana Parente, revisado por Gabriela Carneiro e moderado por Rayane Urani em 11 de setembro de 2020.