Sobre o Inumeráveis

Giovanni Clerici

1935 - 2021

Torcedor convicto, aliava sua persona ao time com o bordão: “italiano e corinthiano que nunca entrou pelo cano”.

Giovanni cruzou o Atlântico no pós-guerra, nos anos 60, para fazer a vida no Brasil. Aqui ele foi ferreiro e soldador na construção civil, em Brasília, até tornar-se comerciante em São Paulo, onde fixou residência, montou uma padaria com os cunhados e pôde exercer a paixão de produzir embutidos artesanais.

Italiano da Lombardia, gostava de cozinhar e passar horas preparando comidas da sua terra natal para a família experimentar. Essa era sua maneira de demonstrar afeto. Os almoços de domingo estavam entre as ocasiões favoritas do patriarca, um apaixonado por risotos, ostras, salames, caipirinhas, cervejas, vinho com soda e, claro, linguiças.

Entre as principais receitas do mestre cuca figuravam o risoto milanês, vários tipos de carne, além do prato preferido dele: a "cassoeula" — uma sopa típica da sua região feita com repolho e carne de porco. Já no menu de bebidas, a especialidade do lombardo resumia-se ao mais notável dos drinques brasileiros: a caipirinha.

Nas reuniões familiares, Giovanni sempre tinha uma boa história do passado ou piada para contar, e reiteradamente uma ideia de negócios, como a venda das receitas de linguiça e salame para alguma rede de mercado. "Todo final de semana falava nisso. Mas, infelizmente, nunca aconteceu", revela Stefano, o neto, cuja memória elege a alegria, a extroversão e o carisma para descrever o avô, com quem costumava jogar cartas, beber cerveja e assistir futebol. "Para mim esses eram momentos felizes e pelos quais eu sinto gratidão", diz ele, recordando-se do copo em que o avô costumava tomar cerveja.

Stefano declara que amava Giovanni e conta que passou a infância na casa dos avós. Mesmo após deixar a cidade para fazer universidade fora, o estudante manteve o hábito de almoçar com eles quando retornava para à capital, nos finais de semana. "Ficávamos direto juntos, viajávamos, ele me ensinava muito. Foi um avô presente e carinhoso, comigo e com as minhas irmãs. Nunca nos deixou faltar nada", diz o neto.

Giovanni compartilhava passagens de sua vida na Itália: "Minha mãe conta que meu avô conheceu um rapaz no período de guerra. Durante 1943 até 1945, esse rapaz ficou escondido na casa de uma família que morava perto da casa em que meu avô morava. Foi assim que se conheceram. E foi por meio dessa família que abrigou esse rapaz, enquanto ele fugia da guerra que os dois se conhecem e mantiveram a amizade até quando o amigo veio primeiro para o Brasil. Depois, esse amigo ajudou meu avô quando chegou a vez dele de emigrar para o Brasil. O processo de adaptação foi um pouco difícil, pois meu avô já havia perdido o pai e a mãe bem cedo; passou por muitas dificuldades, principalmente nos anos da guerra, e ainda teve que partir deixando a irmã na Itália.", relembra Stefano.

Com o tempo, o imigrante aprendeu a gostar do país. Viajou para outros estados, como Ceará e Rio Grande do Sul, e acabou por encantar-se por duas cidades brasileiras, ambas no estado de São Paulo: o Guarujá, no litoral Sul paulista — onde apreciava saborear ostras no restaurante O Pescador, e Campos do Jordão - cidade típica de turismo na época do inverno.

O amigo da juventude também foi responsável pelo destino amoroso do compatriota: ao se casar com uma italiana, serviu de ponte para Giovanni conhecer a irmã da esposa. A amizade entre os concunhados durou a vida toda; da mesma forma, o casamento dos avós de Stefano.

O casal teve três filhos. Juntos, mantinham uma rotina de compartilhar tarefas e estar a todo instante na companhia um do outro, a ponto de a esposa chamá-lo para perto quando se encontrava sozinha em outro cômodo. Os dois saíam para passear de carro, diariamente, e amavam esta prática, segundo o neto.

Para ele, os olhos azuis do avô estarão impressos para sempre em sua memória. “Assim como a promessa que ele fez de parar de fumar, caso a Itália fosse campeã da Copa do Mundo de 2006. E a viagem para a Itália, quando estivemos na casa da minha tia; foi incrível. Acho que foram momentos únicos”, conclui Stefano.

Giovanni nasceu em Cinisello Balsamo, Lombardia (Itália) e faleceu em São Paulo (SP), aos 85 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo neto de Giovanni, Stefano Piatto Clerici. Este tributo foi apurado por Giovana da Silva Menas Mühl, editado por Mariana Quartucci, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 20 de setembro de 2021.