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Glorinha Zidan

1935 - 2020

"Se milagres desejais, recorrei a Santo Antônio"! E assim Glorinha levava a vida com amor e felicidade nos detalhes.

Lar de amor

Glorinha sempre foi alguém muito especial em minha vida: tia, amiga e mãe madrinha. Era quem colocava as mãos em minha face e dizia: "Que bom que você chegou filhinha. Estava com tanta saudade!"

O destino fez com que este sentimento fosse recíproco, porque com carinho conversávamos; com atenção eu negava os seus pedidos de remedinhos extras e com amor e respeito por diversas vezes contive as suas lágrimas. Éramos amigas, daquelas que sentavam à beira da cama sempre de mãos entrelaçadas, contando segredos, fofoquinhas e histórias do dia a dia. Era possível falar qualquer coisa, menos mal do seu antigo e preferido candidato político!

Glorinha é a tia que quando criança fazia com que corresse as escondidas, para colocar uma florzinha na porta do seu salão de cabeleireira. Este era o nosso código secreto, assim saberia quando estive por lá.

A vida fez da minha tia uma pessoa dura com si mesma e triste por não ter vivido um grande amor. Contudo, não faltou coragem para vencer todas as batalhas, desde que deixou de trabalhar como pajem no interior de São Paulo para vir à Capital, onde trabalhou em uma fábrica e adquiriu todo conhecimento de corte e costura. A sua tristeza era porque houvesse, talvez, uma procura que nem ela mesma soubesse o significado, porém amorosa com todas as crianças.

Disseram que em muitos momentos agiu com rigor, mas a única certeza que tenho é da gentileza que havia em seu coração, em ajudar da maneira que podia e a quem precisasse, como ao fazer toucas de lã para serem entregues no setor infantil do Hospital de Clínicas. Inclusive, recebia cartas da diretoria do hospital pelo trabalho realizado. É desta e única forma que posso dizer que a conheci e assim descrevê-la. A única vez que brigamos coisa que durou muito pouco foi porque discordei do seu então candidato predileto!

Ela viveu com muita simplicidade, economizava para ter a segurança de um convênio médico, esta era a preocupação principal, dela e de sua irmã Maria Helena. No apartamento em que viveram não havia luxo, no entanto, não há neste mundo um local com a melhor salsicha ao molho, tampouco a maravilhosa panqueca de frango, feita de forma artesanal com tamanho sabor e carinho. Era muito especial! Posso dizer que o tempo presenteou-nos com muitas histórias de vida...

Mas, com a partida de minha tia e amiga Maria Helena, o seu mundo desabou. Ela que já vivia entre doses altíssimas de depressivos ficou sem chão. Surgiram então momentos de depressão, incompreensão, solidão, sofrimento, desamor e busca de um abrigo. Tudo isso em seus 83 anos de idade, quando pensava já ter vivido o que era necessário. Houve tentativas de residir com a família, mas as diferenças acabaram por criar diversas confusões.

Mas, Santo Antônio, seu fiel escudeiro foi um abrigo em sua vida e quando soube de um local que acolhia idosos pediu que a levasse para conhecer. Lá quando chegou quis ficar! Acredito que o abraço receptivo tenha sido tão maior do que pudera imaginar a própria Casa do Abraço!

Foi um período difícil porque além de buscar estabilização ao seu tratamento compulsivo por remédios, também passávamos por um processo financeiro coberto de dificuldades, contudo tivemos a ajuda de alguém inesperado. Posteriormente, conseguimos alugar o apartamento da Vila Madalena, trazendo estabilidade para que tivesse segurança e cuidados necessários.

Na Casa do Abraço, Glorinha conheceu pessoas, funcionários, colaboradores e dividiu histórias! Foi cabeleireira, costureira e revolucionária! Adorava a cozinheira, mas reclamava da comida! Queria sempre um pouco mais de tempero! Por isso, confesso, levei algumas pizzas, doces e salgadinhos às escondidas!

Quando penso em tantas histórias de vida que pôde conhecer, tenho absoluta certeza que construiu uma nova história junto a estas mesmas pessoas, que mais tarde tornaram-se suas amigas.

Na Casa do Abraço, ela voltou a viver! Costurava roupas para bonecas de brinquedo, fazia roupas para os recém-nascidos netos de funcionárias, além das barras das calças da Dona Cida, e do tricô, onde muitos foram os novelos que a filha da dona Elvira a presenteou. Foi neste Lar de Amor que recebeu o seu primeiro bolo de aniversário! (jamais soube que nunca tivera um bolo de aniversário, tantos presentes recebidos, porém jamais comentou sobre este evento, ela era discreta e recebia cada lembrança com muita alegria e delicadeza).

As festas de natal, de ano novo, de carnaval, de páscoa, junina e demais eventos realizados pela casa e por colaboradores fizeram os seus dias mais vivos e diferentes. Parecia, a meu ver, que o passado doloroso havia se tornado algo distante, e que o novo surgia de forma encantadora, ao lado de pessoas como ela, que ali estavam para fazer RESSURGIR A VIDA com segurança, respeito e cuidados. E esta descoberta era enaltecida quando as amigas de mais de 50 anos de convivência ligavam e ela contava o quanto gostava de onde vivia e das amizades que haviam acontecido, desde então.

Minha tia veio ao mundo com simplicidade e assim Deus a acolheu nos braços. Em sua partida tudo foi realizado com muita simplicidade e de acordo com aquilo que elas preservaram: - a honra. Saibam que cada atitude por mim tomada foi repleta de amor eterno e prezo que traga a mim força à continuidade de dias que serão repletos de saudades, onde o tempo às vezes será ameno e por vezes repleto de lindas lembranças.

Escrevo estas palavras, em nome de Glorinha Zidan, agradecendo aos funcionários, aos médicos e enfermeiros, aos colaboradores, ao moço que por vezes tentou arrumar a sua máquina de costura.

Agradeço aos visitantes que levam orações e propostas de acolhimento social, às inúmeras pessoas que doaram o seu tempo em nome do amor. Agradeço as responsáveis pela Casa do Abraço por tamanha compreensão e dedicação, sempre com muita paciência. Em especial a Sheila e a Sarah pelos cuidados, muito obrigada por estarem sempre ao seu redor, de mãos dadas. Também agradeço ao exímio carinho dos idosos que fizeram parte deste REVIVER, porque acredito que este tenha sido o propósito de vida que Deus propiciou em sua existência.

Do fundo do meu coração, muito obrigada! Fiquem com Deus e com um grande amigo de minha tia, Santo Antônio.

Adriana Zidam Alves

Glorinha nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 85 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha de Glorinha, Adriana Zidam Alves. Este tributo foi apurado por Rayane Urani, editado por Adriana Zidam Alves, revisado por Luana Bernardes Maciel e moderado por Rayane Urani em 6 de março de 2021.