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Gonçalo Cabrinha Veras

1931 - 2020

Onde tinha um forró lá estava ele. Na pista do salão ou ao som do rádio na calçada de casa.

Foi pescador de peixes, de boas histórias e de sorrisos. Também foi servente de pedreiro e vendedor, inclusive dos bolos deliciosos que a esposa fazia. Mas sua profissão mesmo foi pescador. Com o mar tinha relação de muito respeito, a esse lugar que deu seu sustento por tanto tempo.

Só lá pelos 80 anos de idade é que surgiram de forma mais expressiva os fios brancos nesse homem negro, de cabelos pretos e 1,65 m de altura.

Quando jovem precisou trabalhar muito cedo, desde os 12 ou 13 anos. Casou jovem também, com Luiza, que foi como um norte para ele. Não tiveram filhos biológicos mas foram pais. Adotaram uma menina, Cleia, e tiveram outros filhos de criação. Trabalharam muito para garantir o sustento dos filhos. Sobre Luiza, gostava de descrever o quanto eram companheiros. Falar dela sempre lhe trazia um sorriso na boca e brilho no olho.

Foram casados por quarenta e um anos. Depois do falecimento dela, em 1997, passou a morar sozinho em Barra Grande. Amava aquele lugar. Sempre que levava amigos para passar uns dias na casa dele, que ficava bem na praia, pegava o porta-retrato com a foto de Luiza para mostrar.

O estresse não tinha vez com ele. Sempre gentil, amável e sereno, resolvia as coisas na paz, passava longe dos conflitos. Gostava mesmo de ver o netos e bisnetos sorrindo e brincando. Com os amigos e familiares a cerveja gelada sempre marcava presença. Foi um amigo presente, gostava de estar perto da bagunça, do movimento, das celebrações. Visitava todos os amigos que já não podiam mais sair de casa.

O espírito jovem o acompanhou por toda a vida. Tinha especial prazer nas festas de forró de um grupo de idosos de que participava. Só dava ele dançando a noite toda. Ficava na pista até a última música tocar. Ganhava todas as competições de dança, virava assunto em Barra Grande, onde todos o conheciam.

Com esse mesmo grupo de idosos fez inúmeros passeios. Viajava para cidades ou para o Estados vizinhos, e a família só descobria depois, quando ele aparecia e contava para onde estava indo ou de onde vinha vindo. Vivia a vida sem dar satisfação a ninguém. A família só o via mesmo quando ele ia à cidade, Parnaíba, receber a aposentadoria, ou então quando alguém ia passar uns dias na casa dele.

Em meados de 2016, Gonçalo sofreu uma queda e acabou fraturando a perna. Nesse período não pôde mais morar só. Um ano depois, em 2017, devido a outros problemas de saúde, passou a morar com a filha e a neta. A convivência passou a ser diária e a neta pôde finalmente conhecer de perto o avô, ouvir suas peripécias, ver de perto alguém apaixonado pela vida se reinventar diante do acontecimento que fosse.

Teve de deixar os salões, mas como bom inventor deu um jeito de manter a paixão pelo forró. O salão de festa passou a ser a calçada iluminada pelo rádio e suas músicas. Desde 2017 passou a se sentar na calçada todas as tardes, com seu rádio, e colocar música para a rua toda ouvir. Todo dia no final da tarde, depois do banho tomado, ele sentava na porta de casa, ligava o rádio e ficava na companhia da neta ali até escurecer.

Seu Gonçalo ensinou sobre resiliência, cuidado e reinvenção. Mesmo com as adversidades que encarou era a pessoa com com mais risos e vontade de viver que a neta já viu. Ele queria estar perto do mundo, onde pulsavam alegria e movimento. Essa vitalidade tão sua fazia a neta fantasiar a possibilidade da imortalidade. Seu avô viveria pra sempre?

A neta, que sempre ia passar as férias com os avós em Barra Grande, lembra-se dele cuidando do terreno, capinando o cercado. Como amava aquele lugar.

Onde a menina ia a referência era a "neta do Gonçalo". Deixou nela o aprendizado sobre ser livre, sobre amar viver e sobre ser sereno houvesse o que houvesse. "Ele me ensinou amá-lo e me ensinou a amar a vida", diz ela. Riam muito juntos. Até a ida para a fisioterapia era um acontecimento. Cabelo no gel, perfume, todo arrumado. Chegava radiante à clínica. Era sinônimo de festa dentro ou fora dos salões.

Foram tantas ocasiões alegres e engraçadas... Na ânsia do forró, juntos, avô e neta já empurraram a cadeira de rodas da casa dele até o salão de festa só pra ele poder curtir sua música favorita. Os dias eram de estripulias e risadas. Nesse dia riram tanto que quase caíram juntos.

Ele exercia sua autonomia e independência. A filha estava sempre atenta, de longe, tendo notícias de como ele estava. Depois que passaram a morar juntos discutiam todos os dias por bobagens, e no final a neta e ele caíam na risada. Ele dizia que a filha era zangada demais, mas os dois também riam muito juntos. Ele sempre dizia que a melhor coisa que ele fez foi adotá-la.

O que fazia seu Gonçalo feliz? Com certeza, viver! Ele amava viver e estar rodeado de pessoas. Ensinou a importância de ser leve. E que o medo é importante, mas não pode paralisar a gente. Precisamos viver.

A intensidade e felicidade de seu viver foram notáveis e encantadoras. Um amante dos encontros!

Gonçalo nasceu em Luís Correia (PI) e faleceu em Parnaíba (PI), aos 88 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Gonçalo, Hortência Veras Mangabeira. Este tributo foi apurado por Giovana da Silva Menas Mühl, editado por Raphaela Medeiros, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Rayane Urani em 13 de setembro de 2021.