1929 - 2020
Seus olhos brilhavam ao contar lendas misteriosas às crianças, como a da embarcação que todos viram, mas que não estava lá.
Ela era uma mulher incrível, cheia de amor e cuidados com todos que a rodeavam, e dona de uma fé inabalável. "Com ela, palavras como 'por favor' e 'obrigada' sempre tinham lugar de destaque", conta a neta Marcela.
Dona Guió, como era conhecida, era mulher forte, batalhadora e muito prestativa, mesmo com aqueles que não conhecia ou tinha pouca proximidade: de terço na mão, pedia por eles em suas orações.
“Dona Guió sempre tinha tempo para um dedo de prosa e bons conselhos — afinal, já tinha visto de tudo nessa vida. Era como ela dizia: "Já sou macaca velha, minha filha”. E ela tinha audiência, não só dos adultos, mas das crianças: era mãe, avó, bisavó e tataravó também. Deles, arrancava olhares curiosos e suspiros ansiosos quando contava causos de sua meninice, nas Minas Gerais, estado onde passou boa parte de sua vida.
E suas histórias eram carregadas de mistério, como da vez em que, durante uma viagem a bordo do Vapor Benjamin Guimarães, escutou o barulho de um apito vindo de outro vapor, que se aproximava; de longe, ela olhava e via a embarcação, cheia de luzes e, conforme ia chegando mais perto, ela ia sumindo, até desaparecer completamente. Chegou a acreditar que era sonho, mas outras pessoas tiveram a mesma visão.
Falava dos mitos de sua época, e essas histórias davam o que falar entre as crianças, como o que dizia que quem tratava mal a mãe virava lobisomem. Falava da vida dura que tivera e da labuta, desde pequena, quando lavava roupas no rio e depois as carregava numa bacia sobre a cabeça.
E que quando moça, com seus cabelos longos quase alcançando suas pernas, era tão bonita que os rapazes brigavam por ela. Muito vaidosa, gostava de se perfumar, hábito que preservou por toda a vida. Contava ainda que era muito namoradeira, até encontrar o João, com quem formaria sua família.
Amava ver a família reunida e a mesa farta. Amava receber as pessoas e vivia ligando, chamando-as para irem ter com ela, até mesmo no período de isolamento, pois não se conformava de não poder ver os filhos e netos. Era agregadora e nada a fazia mais feliz do que ter a casa cheia.
Os filhos, ela amava mais do que a própria vida, e quando perdeu seu caçula parecia que ela não ia suportar; mas ela era forte e enfrentou. Sofreu durante muito tempo a dor da perda, o vazio de mãe, e nunca mais deixou de chorar sempre que ouvia o nome dele.
Demonstrava o amor que sentia por sua família com seus abraços, palavras e carinho. Ela sempre demonstrava seu amor até mesmo com os vizinhos e amigos.
Era muito apegada à neta, cuja relação sempre foi de muito amor, companheirismo e respeito. Viveram na mesma casa por muitos anos e mesmo após a mudança para Brasília, em 2011, continuaram próximas até que Marcela se casou. E quando demorava a visitar a avó, Dona Guió pedia à filha que ligasse para a neta.
Sempre que podia, visitava sua cidade natal onde reencontrava os amigos, vizinhos e os parentes. Gostava também de ir à mineira Pirapora e quando voltava trazia várias coisas: peixes, farinha, frutas da região, rapadura. Nesses lugares sentia-se maravilhosamente familiarizada, pois conhecia bem os caminhos por onde andava e não tinha medo de ficar na porta sentada vendo o movimento; já em Brasília, sentia-se presa, mesmo com as filhas passeando com ela.
E quando o filho da Marcela, seu bisneto, nasceu, foi pura alegria. Ela o chamava de Santo por tê-lo visto nascer e crescer, todos os dias; ela dizia que ele era um santo por ter feito milagres na vida dela.
Guiomazina era uma mulher religiosa. Mesmo quando perdeu a visão, nunca perdeu a fé de que um dia pudesse enxergar novamente. Ela tinha uma frase, que dizia sempre: "Tudo é como Deus quer". E assim foi.
A perda da visão deixou-a ainda mais próximas da neta, que a acompanhava nas caminhadas matinais, ajudava nos banhos, escolhia as roupas... avó e neta conversavam sobre tudo. Marcela passava o dia com a amada vózinha, pintava suas unhas e usufruía dos momentos de colo, de afago e cafuné.
"Ela era o amor da minha vida!", diz Marcela, que se lembra das vezes em que a avó a buscou na escola, quando menina; quando lhe dava uma balinha ou cascas de mexerica para cheirar, pois aliviava os enjoos no ônibus.
"Ela esteve comigo sempre, desde quando nasci", diz Marcela. "Sinto sua falta como se estivesse faltando um pedaço de mim. A vida continua, mas seguimos com bastante saudade dela, nosso Amor infinito: Dona Guió."
Guiomazina nasceu em Ibiraba (BA) e faleceu em Brasília (DF), aos 90 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela neta de Guiomazina, Marcela Soares Santos. Este tributo foi apurado por Giovana da Silva Menas Muhl, editado por Rosa Osana, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 14 de fevereiro de 2022.