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Hilda Machado Bozza

1938 - 2020

Era como um caule forte sustentando e nutrindo muitos galhos; sua vida foi exemplo de caridade e doação.

Esta é uma carta aberta de Larissa em homenagem à avó Hilda:

Aos 28 dias do longo mês de agosto de 1938, nasceu Hilda. Conta-se que nasceu muito pequena, fazia frio naqueles dias e, para que não se resfriasse, foi enrolada em alguns poucos trapos e acomodada dentro de uma caixa de sapato. Desse período veio o apelido que a acompanhou por toda a vida: “Quena”, de peQUENA. Poucos sabem a origem do apelido, pois de pequena ao nascer, cresceu forte e se fez grande para nós. Foi uma verdadeira fortaleza, sempre em prontidão para ir em socorro de quem a ela recorresse.

Foi filha de Ana Machado Bozza e Estefano Jorge Antonio Bozza, uma das primeiras meninas dos 18 filhos do casal. Destes, 13 cresceram juntos em uma das Colônias de imigrantes italianos de Campo Largo, no Paraná. Recebeu dos pais, como nome de batismo, Hilda Machado Bozza. Era costume destes imigrantes atribuir aos filhos os nomes da geração ascendente ou então nomes ligados ao cristianismo. A ela, coube compartilhar o nome de Santa Hilda e também algumas das qualidades: mulheres simples, caridosas e, que, mesmo com o temperamento forte, despertavam afeto. Santa Hilda é considerada padroeira da educação, da cultura e da poesia.

Hilda Bozza, a nossa Quena, teve uma infância austera. Cresceu numa colônia cujos valores da comunidade de camponeses imigrantes italianos eram: família, trabalho e fé. As escolas da região, de estrutura paroquial e, usualmente instaladas nas dependências da igreja, atendiam prioritariamente os meninos. Privada do acesso ao letramento, cresceu analfabeta. No entanto, valorizava o estudo. Ajudou na criação de muitas crianças e como não podia ajudar na resolução de tarefas, ajudava mostrando o caminho da pesquisa, o que significava, algumas vezes, consultar algum vizinho “estudado”. Nesse caso, ia junto, dando lição de humildade e persistência, pois, realizar e concluir as tarefas, era dever. E um dever deveria ser realizado com graça e boa vontade, já que é instrumento para servir ao mundo e aos outros.

De sua filha de coração, Cintia, recebeu como retribuição a alfabetização. Podendo, enfim, na maturidade da vida, assinar com dignidade o próprio nome, ler sozinha as legendas do noticiário e as placas dos ônibus. Desde então, onde quer que encontrasse papel e caneta, rascunhava. Passou a bordar as palavras e as letras no papel.

Ainda criança, tomou pra si a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos. Os pais trabalhavam dia e noite na roça para garantir o sustento. Ela administrava os afazeres domésticos. Brincava de casinha na vida real. Mais tarde, quando já era moça, a família foi para Curitiba. Com os irmãos já crescidos, procurou trabalho para contribuir com a renda da família e prover o próprio sustento. Sem estudo formal, tinha a força, a disciplina e os saberes sobre a organização do lar que acumulou desde a infância. Trabalhou na casa de famílias da “alta sociedade”. Ajudou na criação de mais algumas crianças nessas famílias. Do que se diz, de todas as crianças que receberam seus cuidados, todas cresceram bem-orientadas.

Mais tarde, a gravidez precoce e não planejada de uma das irmãs resultou em uma das relações mais profundas e significativas de sua vida, nasceu sua sobrinha-neta e filha de coração, como ela mesma dizia. Embora tenha ajudado na criação de muitas crianças: irmãos, netos, sobrinhos, sobrinhos-netos, vizinhos e muitos a considerem uma “segunda mãe”, desta vez ela brigou e assumiu a totalidade das responsabilidades no processo: criou a Cintia. Amou, se orgulhou, ajudou, cobrou, como mãe.

Quando a vitalidade já não correspondia às muitas demandas do trabalho doméstico (exigente e quase sempre inviabilizado), conseguiu emprego em uma escola pública da região, trabalhava na cozinha, auxiliando no processo de garantir a nutrição dos estudantes. Na cozinha, aliás, fazia alquimia. A comida simples era nutritiva e saborosa. As sopas, o café, o pão, as torradas e os bolinhos à tarde, estavam sempre presentes e hoje fazem parte de uma lembrança de conforto e aconchego.

Quando aposentada, cuidou da mãe adoecida até o momento da partida. Cuidou de outras muitas crianças em diversos momentos. Cuidou dos bisnetos de coração. Cuidou do jardim, das plantas, da casa. Cuidou de tudo o que pôde com amor. Por vezes, era brava, exigente e um pouco desajeitada nas cobranças. Mas seu desejo de promover o bem na vida das pessoas, era a finalidade de suas ações. Gostava de ver as pessoas crescendo – em tamanho e na vida. Cuidar e ajudar era, para ela, imperativo que não se relativiza.

Tinha uma capacidade extraordinária de se doar ao próximo e defender com afinco sua ideia de justiça. Nunca se conformou com a prerrogativa de usufruir de qualquer privilégio se estes não estivessem disponíveis a todos. Seu trabalho serviu ao crescimento e expansão de muitos. Era como um caule forte sustentando e nutrindo muitos galhos. Sabia cuidar, nutrir e regar como poucos. Embora não tenha gerado nenhum filho de seu ventre, dominava a arte de perpetuar e prover a vida. Suas mãos tinham o poder de restaurar uma planta em qualquer estado. Talvez porque cultivar seja arte de equilibrar observação e providência na justa medida, que ela dominava sem teorias. Tinha um jardim cheio e vistoso, que despertava curiosidade nos transeuntes. Fazia amizades no portão, gostava de conversar, tinha muitos conhecidos, gostava de partilhar o café e os frutos com que a natureza recompensava seu trabalho na terra.

Foi um exemplo de simplicidade, solidariedade, caridade e doação. Não acumulou bens materiais, e, embora não tivesse muitos recursos e renda elevada, nunca deixou de doar e repartir o que tinha para amenizar o sofrimento de quem quer que fosse. Tamanha doação não era compatível com um planejamento de vida tradicional: não casou e não perseguiu a tradicional realização profissional. Ela se realizou ajudando a tantos quanto podia.

Teve uma história austera, a vida não lhe foi generosa, impôs uma trajetória com muitos espinhos, à qual ela respondeu fazendo desabrochar rosas. Cultivou lembranças e memórias que estarão eternizadas naqueles que com ela puderam conviver.

Como herança, deixou um pouco de si em cada um de nós que dela recebemos cuidados. No jardim da eternidade, colhe a nossa gratidão.

Sentiremos saudades.

Hilda nasceu em Campo Largo (PR) e faleceu em Curitiba (PR), aos 81 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Hilda, Larissa Bozza Isquierdo. Este tributo foi apurado por Lígia Franzin, editado por Lígia Franzin, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 26 de outubro de 2020.