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Iracildes Moreira Andrade

1947 - 2020

Dona Cida gostava da vida no campo, de fazer crochê e de saber tudo que se passava ao redor.

O campo foi o lar que ela escolheu para viver, estar perto das plantas e da natureza era sua forma de respirar vida. “Às vezes a gente mostrava algumas imagens de plantas e flores pelo celular e ela ficava boquiaberta”, lembra o neto Romilton. Dona Cida ou Cidinha, como era unicamente conhecida, casou-se com Milton Soares Rebouças e foi morar em uma cidade bem no interior da Bahia. Lá, ia para a roça e fazia os trabalhos manuais sem medir esforços.

Durante muitos anos, os seus dias eram de muito sol ou chuva nas costas, mas sempre com um sorriso no rosto. Embora fosse cansativo, ela trabalhava ao lado do marido de domingo a domingo. “Mas se tivesse um dia santo na semana, tinham que parar. Não podiam trabalhar, era errado para eles. Não trabalhavam pelo respeito que tinham”, conta Romilton.

Com o seu grande amor e alma gêmea, teve cinco filhos João Batista, Irlete, Ivanilda, Ivanildo (em memória) e Miguel. Recebeu três presentes em forma de netos: Rafael, Romilton e Alisson. Com o seu jeito brincalhão, costumava dizer aos netos que não queria mais um menino na família, estava chegando a hora de ganhar uma bisnetinha: ‘Caça um jeito de, quando tiverem um filho, me dar uma netinha. Eu não aguento mais, vamos tentar menino mais não.’

Mulher de fé, Cidinha passou por períodos sofridos, mas nunca se deixou abater. Em seu quarto e na mesinha da sala, tinha alguns textos e imagens de santos (inclusive, algumas em 3D) que a guardavam de todo o mal. Rodeada de proteção, usava uma correntinha de ouro e, eventualmente, um brinco de Nossa Senhora de Aparecida. Em dias santos, acendia uma vela em memória àqueles familiares que tinham partido.

Quando era mais nova, tinha o costume de ir à missa. Com o passar do tempo, devido a alguns problemas de saúde e, especialmente, sua dificuldade para respirar, ela tinha receio de dar trabalho, então preferia não frequentar. “Ela me ensinou algumas orações e sempre falava para nós ‘Meus filhos, vão para a catequese, procurem ir na missa. Eu só não vou mais hoje porque eu não aguento, senão eu iria’”. Aos domingos, assistia à missa pela televisão, amava o programa do padre Alessandro Campos e a missa de Aparecida.

A família sempre se reunia em datas comemorativas como Natal, Ano Novo, Páscoa, Sexta-feira Santa e São João. Mas no dia-a-dia essa convivência não era interrompida, fosse por meio de ligações ou pelo contato direto das visitas que recebia na roça ou dos passeios à casa de um dos filhos, nos almoços de domingo. Dona Cida era amada por todos, inclusive, ela mesmo brincava dizendo que todos gostavam dela.

“Ela tinha um perfume marcante. Ela não era de sair, se arrumava mais para vir aqui em casa aos domingos ou quando precisava fazer algum exame. Mas quando eu sentia esse cheiro, já pensava: esse cheiro é de vó. Vó tá vindo aí ou vó passou por aqui.”, recorda Romilton.

Bastante conversadeira, adorava prosear com os vizinhos no portão, lembrar histórias e causos do interior e falar sobre seus familiares e a vida no campo. Cantarolava canções antigas e tinha facilidade para decorar músicas. Mal podia escutar uma canção na televisão que, depois de algum tempo, lá estava ela cantando – sempre fazendo as suas pausas para recuperar o fôlego entre um verso e outro.

Se durante o dia algum dos netos pedisse para que ela preparasse jacuba, era como se fosse uma ordem. Cheia de afeto, Cidinha ia correndo preparar o prato para que ficasse pronto a tempo do jantar. Adorava mimar e proporcionar aos netos tudo o que podia, essa era uma das maneiras de demonstrar o seu amor.

Outra mania clássica de Dona Cida era chegar de mansinho e pedir parte de algum prato que não podia comer devido ao diabetes. “Ela tinha o costume de, quando a gente estava comendo algo, chegar assim pelos lados e falar ‘Uuuuh, tá comendo o quê? Da um pouquinho, só um pouquinho? Só um tiquinho, só um tiquinho. Pouquinho não faz mal não.’ E isso ficou no coração da gente.”

Amava passar o tempo fazendo crochê, bordado e fuxico, mas estava sempre de olhos e ouvidos bem atentos para o que se passava ao redor. Especialmente se alguém estava, como brincadeira, imitando uma das frases dela. Uma lembrança especial de Romilton é sobre sua mania de questionar tudo e se incomodar quando não tinha a resposta que desejava.

“Se eu estava conversando com a minha tia na sala ou na cozinha e minha vó estivesse em um cômodo próximo, e eu comentasse algo baixo (não necessariamente sobre minha vó, só por não ter necessidade de falar alto), vó ouvia uma palavra e achava que aquilo era sobre ela. Aí ela falava ‘É o que que vocês estão falando? Tão falando de mim, é? Vocês não escondam não.’, e eu tinha que explicar que não era sobre ela, pedir para ela se acalmar.”

A sua curiosidade e paixão pela vida eram o motivo de Dona Cida aproveitar e se entregar. Ela sabia que o segredo sempre foi valorizar cada instante e não deixar nada para amanhã. O seu olhar bondoso e seu coração amoroso transcendem qualquer dimensão e ela estará sempre presente aguardando, ansiosamente, por uma menina na família.

Iracildes nasceu em Dário Meira (BA) e faleceu em Jequié (BA), aos 73 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo neto de Iracildes, Romilton Santos Moreira. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Marina Teixeira Marques, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 8 de junho de 2021.