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Itália Zaccaro Faraco

1916 - 2020

Iluminada feito o Renascimento, ela era quase o país homônimo. Mas era brasileira e não tinha fronteiras.

É ao país de origem de Biaggio Faraco e Francesca Zaccaro, seus pais, que o nome de Itália faz homenagem. Eles casaram-se na cidade de Lauria, em agosto de 1900. Em novembro do mesmo ano, embarcaram no navio "Duchessa di Genova", no porto de Gênova, rumo ao Novo Mundo. Chegaram ao Brasil em dezembro, instalando-se em Alegrete, no Rio Grande do Sul.

Entre os 12 filhos dos pais imigrantes, estava ela: a eterna menina de olhar meigo, que nem seus óculos enormes conseguiam esconder. Itália usava roupas simples e no cabelo gostava de usar passadores ou tiaras. Nem pense que saía na porta de casa sem se arrumar! Quem conhece a ternura italiana, mesmo que apenas por fotografia, já entendeu que ela era quase a personificação do país. Quase. Ela foi além do gosto pelo seu cuidado.

Um dos maiores charmes geográficos da Itália europeia é o formato de bota. A Itália brasileira e feminista, por sua vez, além de adorar os enfeites, escolheu ultrapassar as imaginárias limitações impostas sobre o que é ser uma mulher. Formou-se no Magistério e fez curso superior de Psicologia na Universidade de Belo Horizonte (UniBH). Também exerceu cargos de destaque na Secretaria de Educação do Estado, onde foi Diretora do Departamento de Cultura e Presidente do Conselho Estadual de Educação. Em função, criou o serviço oficial de televisão do Estado e a TV Cultura. Mais tarde, recebeu do Governo do Rio Grande do Sul o título de “Professora Emérita”.

"Ela havia escolhido, no seio de uma família italiana tradicional, não se casar. Eu achava o máximo aquela independência e determinação. Quando entendi o feminismo, também entendi e admirei mais ainda a pessoa que era a Itália", revela a sobrinha-neta Carolina, que guarda numa memória sem fronteiras os bordões e comportamentos da tia. "Quando chegávamos lá para visitar ou para buscá-la para algum passeio, ela recebia todos com o seu característico 'entra sem vergonha, senta e vamos tomar um café ou um refrigerante e conversar'. Sabia que serviria para qualquer um e que nos reconheceríamos naquele insulto cômico. Uma espécie de afago, em falso mau humor, para manter as aparências da seriedade. Mas o coração traía a encenação e caíamos aos beijos na querida tia Itália. Podíamos ficar ali horas ouvindo suas histórias", completa.

Quantas histórias! Suas conversas passeavam entre o dia a dia, a alimentação, os pequenos passeios pelo centro de Porto Alegre e as viagens por Alegrete e pelo mundo. Deslocada de qualquer placa tectônica, a mulher-país conheceu muitos lugares com os próprios pés, da maneira que quis e programou. Dizia sempre que não havia um lugar no mundo onde não tivesse pisado. A voz firme e decidida, ali, caminhando junto ao doce de pessoa que era, só comprovava os fatos. Mulher completa em si mesma e em sua relação com o próximo. Doou todos os seus livros de Psicologia à Biblioteca Pública Municipal Mário Quintana. Quanto ao seu apartamento, destinou à Santa Casa de Alegrete.

Junto às saudades de dimensões continentais, a gaúcha também deixa um legado imensurável de muito amor. "Com os 104 anos quase completos, ela não teve filhos. Mas teve a nós, sobrinhos, que a amávamos e que fomos presenteados com a grandeza do seu coração e do seu caráter até o final da vida", afirma Carolina. "Que mulher, que vida, que tia, e que Faraco de força!", exclama.

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"Ela me via desenhando e explicava pra minha mãe o que cada rabisco queria dizer psicologicamente", recorda Bernardo, outro sobrinho. "Ela dizia que levar meu irmão mais novo ao parquinho era uma delícia, só para vê-lo brincando. Eu achava engraçado e gostava ainda mais dela. Um dia, ela deixou minha mãe braba com um alerta: esse menino vai perder o contato com a realidade, de tanta história que você conta. Nessa, a tia Itália errou. Eu virei jornalista e conto histórias para viver. Chegou o dia de contar um pouco a dela. Inclusive para a minha filha, enquanto decifro rabisco, assisto a ela no parquinho e, principalmente, conto uma história depois da outra. Um dia, ela vai olhar para esse mundo com os olhos cheios de curiosidade da tia Itália", finaliza.

Itália nasceu em Alegrete (RS) e faleceu em Porto Alegre (RS), aos 103 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha-neta e pelo sobrinho-bisneto de Itália, Carolina Almeida Faraco e Bernardo Mortimer Gomes Carneiro. Este tributo foi apurado por Rogério Oliveira, editado por Irion Martins, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 2 de outubro de 2020.