Sobre o Inumeráveis

Ivanete Alves da Silva Modesto

1968 - 2021

Brincavam que Ivanete possuía um "Disk Oração", pois ela nunca se negava a ajudar e a visitar pessoas necessitadas.

Conhecida por seu grande coração, amava ajudar a todos. Gostava demais de aprender e conhecer de tudo. Na infância, cursou até a sexta série. Adulta, deixou o emprego para cuidar das filhas e voltou a estudar, empenhando-se completamente nos estudos, nunca se conformando com notas abaixo de oito. Fez dois cursos técnicos e outros de inglês e espanhol.

A alegria de Ivanete ao descobrir que tinha passado no vestibular foi algo indescritível! E quando se formou como Secretária Bilíngue, em 2019, sua emoção contagiou a todos. Saiu com o diploma já se programando para realizar outras duas graduações. Volta e meia, incentivava as filhas a estudar e sempre dizia que o seu sonho era vê-las formadas.

Gostava muito de se aventurar, mesmo que sozinha. Aos 50 anos fez um intercâmbio para a Argentina. Passou meses se organizando e planejando essa viagem. No dia do embarque, parecia uma criança ansiosa para ir a algum passeio. Viveu intensamente cada segundo que passou naquele país. Ligava diariamente para contar novas histórias: do que mais tinha gostado, dos tangos e enviava fotos e vídeos dos espetáculos que assistia. Também dizia que já não aguentava mais as “papas”, que nada mais são do que batatas, e que ansiava por comer seu habitual feijão com arroz.

No seu retorno trouxe lembrancinhas para todo mundo: comprou tantos presentes para a família que só percebeu que não tinha se presenteado quando chegou em casa. Planejava voltar à Argentina, falava dos passeios, da cultura e, principalmente, do churrasco e do tango.

Sua história de amor com Maurício começou de forma inusitada: eles cresceram próximos um do outro, uma vez que Darci, a mãe dele, era chefe de Francisca, a mãe dela, que chegou a residir por algum tempo no quintal da primeira. Quando os dois cresceram, namoraram, casaram-se e viveram juntos por trinta e um anos.

Ela gostava de música e ele se recorda da esposa quando ouve "Sunshine on my Shoulders", do cantor americano John Denver, em que um trecho traduzido diz:

[...] "Se eu tivesse um conto que pudesse contar a você
Eu contaria uma história para fazer você sorrir
Se eu tivesse um desejo que pudesse desejar para você
Eu desejaria que o sol brilhasse o tempo todo."

Conta a filha Thalita: “Como mãe, foi extremamente cuidadosa, preocupada, largava tudo por nós e nos oferecia o mundo, mesmo quando não merecíamos. Durante toda a vida, sacrificou-se para nos dar o melhor: estava sempre a postos para nos mimar — podia ser fazendo um bolo ou contando histórias divertidas. Se algum de nós dissesse estar com vontade de qualquer prato, na próxima refeição era certeza que teríamos aquilo”.

Mãezona, sempre tinha os melhores conselhos, ensinamentos, broncas e abraços. Oferecia carinho e atenção 24 horas por dia. Dedicou a vida às filhas e o fez de forma impecável. Não as deixava por nada desse mundo e por elas comprava qualquer briga, a ponto de, no ano de 2020, lutar para ficar como acompanhante da filha que esteve internada por Covid-19.

E Thalita continua falando sobre a mãe: “Com sua personalidade afetuosa, mantinha-se sempre disposta a dar um abraço e um colo, a dizer uma palavra de incentivo ou nos ajudar a encontrar uma solução. Por transbordar tanto amor, nossos amigos acabaram se afeiçoando a ela; em troca, minha mãe os aconselhava e os acolhia com todo carinho desse mundo. Em seu núcleo familiar, estava sempre a postos para ajudar quem precisasse, tendo, inclusive, cuidado de todas as crianças da família. Não podia ver um bebê que os seus olhos brilhavam”.

Ivanete era apaixonada por jogos e todas as noites a família se reunia para jogar algo. Quando as filhas eram mais novas, ela passava horas e horas jogando ou assistido a desenhos com elas. Seus passatempos favoritos eram UNO e o joguinho eletrônico "de bombas". Nas horas vagas, gostava de conversar com os amigos e assistir a novelas. Quando os seriados passaram a fazer parte de sua vida nunca conseguiam maratonar em família, porque ela sempre se adiantava para saber logo o final.

Ler e ouvir músicas faziam parte de sua rotina diária. Passava horas falando sobre os livros que estava lendo, ensinando e explicando alguma novidade. Com sua alma intensa, quando lia um livro emocionante, chorava de soluçar; se ouvia uma história engraçada, chorava de tanto gargalhar. Sempre incentivou as filhas a adquirirem esse hábito e todas as vezes que chegavam com um livro novo, ela primeiro reclamava que não tinha mais onde guardá-los, mas logo as elogiava pela prática e pela estante cheia. Mantinha-se sempre bem informada: se deixassem, ela assistia aos telejornais o tempo todo.

Adorava passear e bastava alguém falar: "Vamos?", que logo ela já estava pronta para ir a "shoppings", parques, restaurantes, exposições, viagens. Com ela, não tinha tempo ruim: quando o convite não vinha dos outros, ela mesma chamava as filhas para sair.

Em sua casa, cozinhar sempre foi um evento, conforme conta Thalita: “Quando eu era bem mais nova, eu acordava cedinho para anotar as receitas de um programa de culinária para depois minha mãe fazê-las para mim. Por vezes, fazíamos mutirão na cozinha e cada um ficava responsável por uma parte do preparo. Rapidamente, tínhamos um banquete pronto para nos deliciarmos”.

A melhor cozinheira que existia, conquistava a todos pelo estômago, preparava as refeições com muito amor e se aventurava em criar novidades culinárias. Embora a maioria dos quitutes dessem certo, quando isso não ocorria, tornava-se história para ela contar em meio a gargalhadas. Sempre tinha a mesa farta e ninguém nunca ia embora sem uma marmitinha.

Suas especialidades atendiam aos gostos de todos da família. Thalita preferia coxinha, panqueca e torta. Thamires, era apaixonada por pudim, arroz-doce e estrogonofe. O marido gostava da costela bovina, da feijoada e do cuscuz. Entretanto, existiam também os pratos característicos para determinada época ou situação. No fim do ano, por exemplo, ela preparava pernil, picadão, frango, pudim e gelatina colorida. Nos aniversários, o bolo de formiguinha era sempre pedido. Quando o tempo esfriava, suas sopas e mingaus eram feitos para aquecer os seus amores. Quando ela cismava que as filhas estavam “amarelas”, logo preparava o seu "suco saúde". Além disso, fazia inúmeros chás e xaropes caseiros.

Thalita gosta de contar sobre a convivência com a mãe: “Nos últimos tempos, eu estava com uma escala bastante flexível no trabalho. Então, eu acordava e ia logo para o quarto da minha mãe; passávamos a tarde deitadas, fosse comendo guloseimas, conversando, assistindo algo ou até mesmo quietas, cada uma com o seu celular, mas sempre uma do lado da outra. À noite, quando minha irmã chegava do seu emprego, elas ficavam assistindo a séries até tarde".

Evangélica, seguia sua religião com amor e dedicação, sempre desejando bençãos a todos e orando pela família. A Igreja era o seu refúgio: em dias de culto, ela ia feliz e voltava radiante. A sua grande felicidade era acompanhar as vigílias e subir ao monte para orar. Todas as vezes que ela voltava do monte, estava iluminada.

Era totalmente focada nas atividades da Igreja, sonhava em participar de missões e qualquer cargo ou função que lhe ofereciam ela aceitava. Durante anos ela foi a "tia da escolinha dominical", sendo sucedida por uma de suas ex-alunas. Esse fato inclusive a enchia de orgulho.

Dedicava-se ao máximo a toda função que lhe era conferida. Quando dava as aulas dominicais, fez cursos e comprou livros para aprofundar a palavra do Senhor para as crianças e os adolescentes. Como conselheira da Igreja, estudou Teologia.

Auxiliava na organização das festividades e sempre colaborava com novas ideias. Toda vez que a Igreja passava por dificuldades financeiras, ela sempre organizava algum evento para arrecadação de fundos, como a tarde do sorvete e a noite do pastel. Suas tardes, muitas vezes, eram dedicadas a visitar pessoas que precisavam de ajuda.

Todos que a conheciam ligavam para pedir a sua ajuda. A família até brincava que Ivanete possuía um "Disk Oração", pois ela nunca se negava a ajudar. De tempos em tempos, visitava hospitais públicos para orar e oferecer auxílio para as famílias dos enfermos. Incentivava as filhas a realizarem projetos sociais em orfanatos e casas de repouso.

A família ilustra sua capacidade de aconselhar relembrando histórias reais: “Um amigo estava passando por uma crise em sua vida amorosa e financeira. Por isso, veio até nossa casa para que minha mãe o aconselhasse. Na época, ninguém sabia das necessidades que ele vivia. Nesse dia, minha mãe não apenas deu bons conselhos, mas também lhe presenteou com alguns mantimentos. Alguns anos depois, ele veio agradecê-la pelas palavras de sabedoria que lhe foram frutíferas”.

Dentre os seus ensinamentos mais valorosos está o de que não importa as circunstâncias, ajudar aos outros é essencial e ela dava inúmeros exemplos de generosidade: “Certa vez, estava saindo da farmácia à noite e um senhor em situação de rua me pediu uma ajuda para comprar um lanche. Então, prontamente ofereci o dinheiro e ao chegar em casa contei aos meus pais que meu coração ficou partido porque estava frio e eu não tinha mais nada para ajudá-lo. Como minha irmã estava de saída, minha mãe pediu para ela encontrar esse senhor e lhe entregar uma coberta, uma sacola com bolachas e uma garrafa com chá quente recém preparado”, conta Thalita.

Ela desfia inesquecíveis fatos vividos em família: “Minha mãe sempre foi muito justa com as filhas. Então, quando eu era pequena, todas as vezes que tinha passeio na escola, ela nos acompanhava só para levar a minha irmã caçula. Quando fomos ao Zoo Parque, excursão em que a minha tia Ana também nos acompanhou, tivemos um dia extremamente divertido! Os meus amigos da escola viam a minha mãe como uma tia. Por isso, nesses passeios, ela passava a maior parte do tempo brincando com eles”.

“Nas férias, pegávamos 'listas amarelas' do telefone, que continham divulgações de alguns passeios e museus. A partir dali, traçávamos o roteiro de onde iríamos e do que conheceríamos em cada programação. Certo dia, fomos ao Museu do Brinquedo, que na ocasião estava em reforma. Minha mãe, ao me ver triste, resolveu mudar o roteiro de última hora para nos levar ao Instituto Butantã. Fiquei maravilhada por conhecer as cobras de perto, tanto que a fiz voltar comigo em outras oportunidades.”

“Ela era aficionada por parques de diversão. Quase todos os meses íamos a algum. Quando ficamos maiores, ela passou a nos levar a um parque temático enorme, na Rodovia dos Bandeirantes. Minha mãe definitivamente amava aquele lugar, divertia-se bem mais que a gente! Certa vez, teve um sorteio de ingressos para passar o Dia das Mães no parque e ela fez todo mundo se inscrever. Nós ganhamos os ingressos e fomos até lá. Com brilhos nos olhos, repetia que tinha sido o melhor passeio, já que o parque estava vazio e ela podia sair do brinquedo e praticamente voltar sem fila.”

“Dentre hábitos e costumes diversos, é sempre lembrada por deixar o seu dedo para cima igual uma cabeça de tartaruga, por lotar os grupos da família com notícias, ou ainda por fazer um estoque de comidas como se o mundo estivesse prestes a passar por um Apocalipse Zumbi. Além disso, fica a imagem do quanto ela chorava assistindo a filmes ou lendo livros e a gargalhada que a deixava vermelha. Quando perguntada para quem torcia, respondia prontamente que era do time de Jesus.”

“Nas Bodas de Prata dos meus pais, Thamires, Ana e eu organizamos uma festa-surpresa para celebrar a data. Eu os avisei que em determinado dia iríamos jantar fora para comemorar algo, mas não falei mais nada. Minha mãe falou para todos que eu ficaria noiva e estava com vergonha de contar. Então, ela organizou a família, fez todo mundo comprar roupas bonitas e irem ao salão. Quando ela viu a festa, logo perguntou: 'Ué! Você não vai ficar noiva?' No começo, ela ficou desapontada porque pensava que eu iria me casar e lhe dar um neto; mas, quando ela viu todas as pessoas queridas ali reunidas, animou-se e curtiu a festa como se não houvesse amanhã.”

“Minha mãe sempre foi uma pessoa extremamente atrapalhada, caía em qualquer lugar e isso acontecia das maneiras mais inacreditáveis e engraçadas. Ela contava que, na juventude, quebrou a perna e acabou precisando de gesso. Quando foi ao hospital para retirar a bandagem, acabou caindo novamente e voltou para casa com o braço engessado. Todos ficavam incrédulos quando ela narrava essa façanha.”

“Teve uma época em que ela, minha irmã e eu saíamos praticamente juntas pela manhã. Certo dia, minha mãe saiu e logo voltou, enquanto nós duas ainda estávamos nos arrumando. Pensamos que ela tinha esquecido de algo, mas quando olhamos novamente, ela estava toda 'ralada' e com a sandália na mão. Desesperadas, corremos para acudi-la. Então, ela disse ter sofrido um atropelamento... até que começou a gargalhar, contando ter sido atropelada por uma bicicleta. Nessa altura, tivemos uma crise de risos tão grande que acabamos perdendo a hora.”

“Em outro episódio, estávamos assistindo a um filme de suspense em casa. Minha mãe prestava atenção na história enquanto tomava um caldo. De repente, levou um susto em uma cena de suspense e jogou o caldo todo para cima! Nós não conseguíamos parar de rir para ajudá-la! Enquanto isso, ela se abanava do caldo e justificava: 'O cara também tinha que entrar pela janela? Não sabe usar a porta, não?'”

"Frequentávamos um rodízio que se tornou o nosso favorito. Minha mãe era apaixonada pelo frango servido lá, até brigava conosco para ser a única a saborear a iguaria. Ela também amava doces, uma verdadeira 'formiguinha': impossível realizarmos alguma compra e voltarmos sem uma goiabada, uma caixa de chocolate ou um pacote de doce de amendoim.”

Ivanete era uma grande incentivadora dos sonhos das filhas e neles se incluía para ajudar, comemorar todas as conquistas e era colo certeiro quando os seus desejos não se tornavam realidade.

Participar dos sonhos alheios não a impedia de acalentar os próprios sonhos, que eram os de saltar de paraquedas no seu aniversário de 53 anos; realizar uma viagem ao redor do mundo começando por Portugal; viajar com toda a família para conhecer um parque temático nos Estados Unidos; morar em outro país, mesmo que fosse por pouco tempo; presenciar a formatura e o casamento das filhas; fazer outra faculdade; ter uma instituição voltada para a recuperação de pessoas em situação de rua; comprar de um sítio depois que se aposentasse e de ser avó e cuidar de seus netinhos. Ter partido tão cedo não lhe permitiu realizar todos eles.

Foi guerreira, batalhadora, forte. Apesar das dores sofridas no decorrer da vida, foi alguém que nunca perdeu o brilho, a alegria, o amor. Com um coração gigante, não se importava com o mal que lhe fizessem e estava sempre pronta para estender a mão. Nunca via maldade em ninguém, e quando a família insistia para que ela fosse mais sagaz com quem tentava se aproveitar de sua pureza, ela sempre dizia que o mal se paga com o bem e que não é porque as pessoas são ruins que ela também seria.

Ivanete era extremamente justa: já internada, teve uma reação alérgica e, pela demora em resolver o problema, a filha fez uma queixa à Ouvidoria do hospital. Ivanete a repreendeu dizendo que o enfermeiro havia tentado ajudá-la, exigiu que pedisse desculpas e retirasse a queixa. Não deixava que ninguém ficasse mal, mesmo pessoas que ela nem conhecia.

Ela conservou seu bom humor até o fim, ao exigir, em seus últimos momentos de lucidez, que sua filha tirasse uma foto dela com a máscara de oxigênio, só para ver como ela ficava!

Para concluir a homenagem Maurício o marido, as filhas Thalita e Thamires e a irmã Ana Cristina tentam resumir sobre Ivanete:

"É difícil descrever alguém que dedicou sua vida a ajudar quem mais necessitava. Em um dia de frio intenso, quando fui dormir, dei pela falta do meu cobertor preferido, que era o mais grosso, quente e macio. Perguntei-lhe, que respondeu: 'Doei para um morador de rua que estava precisando muito'. Descrevê-la é o mesmo que descrever um anjo, e ela partiu no exato instante em que suas asas ficaram prontas", diz Maurício.

"Ela foi a pessoa mais incrível e a mãe mais dedicada que já conheci! Possuía o melhor abraço do mundo, que curava qualquer ferida. Seus conselhos resolviam qualquer problema. Estava sempre a postos para dar o seu melhor para a família e a prezar pelo bem-estar de todos", conclui Thalita.

"Como descrever a mulher mais inspiradora do universo? Cheia de sonhos, alegrias e sentimentos, me ensinou tanto que não cabe em apenas uma frase. É como eu sempre digo: se eu for metade da mulher que ela foi, serei uma pessoa incrível", diz a filha Thamires.

"Ela foi minha irmã, cuidadora, mãe, guia, amiga e confidente. Era feita de amor, de sonhos e de fé. Nunca se colocava em primeiro lugar, os outros eram a sua prioridade. Tinha sempre em seus lábios palavras de conforto e de carinho. Sua inspiração vinha dos céus porque quem é preenchida de luz, a irradia", diz a irmã, Ana Cristina.

Ivanete nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 52 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo marido, pela filhas e pela irmã de Ivanete, Maurício Modesto, Thalita Flavia Modesto, Thamires Ettiene Modesto e Ana Cristina Cordeiro Natividade. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 10 de novembro de 2022.