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José Carlos Machado

1959 - 2021

De fita métrica no pescoço, atendia os clientes esbanjando elegância em roupas feitas por suas mãos habilidosas.

Usando fios de carinho, alegria, sinceridade, franqueza, honestidade, persistência, determinação, dignidade e foco, Carlos, como era conhecido por todos, teceu a vida. Uma costura que fez dele uma pessoa capaz de ser “um pai exemplar, um avô atencioso que paparicava as netas; uma pessoa que nunca brigava... sempre prestativo”.

Vaidoso, Carlos gostava de estar sempre bem vestido. Em sua alfaiataria, de segunda a sexta, desfilava pura elegância, com roupas feitas por suas habilidosas mãos. Cotidianamente, escolhia cada peça do figurino com cuidado, combinando cores e acessórios para compor um visual que o agradasse. Ao final do processo, lá estava Carlos com a roupa impecável e bem passada, sem esquecer do cabelo que também sempre estava bem arrumado. Com o passar do tempo, quando ganhava um pouco de peso, ele tirava novas medidas de si mesmo para suas calças e camisas. Sorrindo, a filha Caroline conta que, algumas vezes, ele precisou trocar o molde usado no corte das peças. No final de semana, gostava de calção, camisa polo e tênis.

De temperamento calmo e tranquilo, era raro que Carlos ficasse irritado ou nervoso. Quando isso acontecia, uma peculiaridade chamava a atenção. Na intensidade do momento, ele ficava vermelho e os olhos verdes mudavam de cor, variando para um tom de azul.

Em plena capital paulista, o alfaiate, caprichoso e zeloso em cada trabalho que realizava, praticou por anos o ofício aprendido com o pai, Senhor Machado. Não importava se o trabalho fosse um reparo ou a produção de uma peça confeccionada com tecido caro para uma situação de gala. O envolvimento e empenho na busca do melhor resultado era uma constante. Com a fita métrica no pescoço, escolhia o molde adequado e com bastões de giz riscava cuidadosamente as partes da roupa que estava para acontecer. Perfeccionista, cuidava de cada detalhe e em muitos momentos, pensando na relação custo-benefício, propunha alterações no modo de produção da peça, a fim de baratear o preço pago pelos clientes.

Bom que se diga que a alfaiataria, que funcionou no mesmo bairro durante cerca de trinta anos, além de lugar de trabalho, era espaço de muito afeto. A filha Caroline conta que “nós nascemos dentro da alfaiataria. E assim, a pessoa dele se misturava com a profissão”. A tal ponto que um de seus codinomes era “O Alfaiate”. Numa das paredes do estabelecimento foi reservado espaço para que surgisse também o “painel do Vô”. Nele, a neta Mirela colava desenhos que fazia, na intenção de presentear o avô e colorir o mural e a loja. Por sua vez, Melina, a outra neta, aprendeu a costurar com Carlos. Na infância, usando os pontos de “pé de galinha”, fazia roupas de boneca com as orientações amorosas do avô.

Após o falecimento do querido avô, a pequena Mirela continuou fazendo seus desenhos. Na impossibilidade de serem colados no painel do Vô, passaram a ser afixados na porta da loja onde funcionava a alfaiataria. Diante da continuidade do ato de desenhar da neta, Caroline, a mãe de Mirela, teve uma ideia repleta de inventividade e afeto. No dia 20 de cada mês, data do falecimento de Carlos, as duas passaram a mandar desenhos para o avô que estava lá no Céu. Ela passou a comprar bexigas de gás para colar nelas o desenho de Mirela, e na porta da loja onde funcionava a alfaiataria as duas soltavam a bexiga, que subia colorindo o céu da cidade de São Paulo até sumir na imensidão. Caroline confessa que, a cada bexiga, a torcida era para que o balão não estourasse. Porque para Mirela, em seu universo infantil, o ato significa que o avô está pegando os desenhos dela lá nas alturas. Houve um dia em que a bexiga estava um pouco murcha e a torcida precisou ser ainda mais forte. Por razões que o racional não explica, após algum tempo flutuando perto do chão, o balão subiu e, como de costume, desapareceu nas nuvens.

André, o filho do meio de Carlos, aprendeu a costurar com o pai. Embora não tenha decidido continuar com a alfaiataria, acabou ficando com as máquinas e os materiais do pai. E no seu ritmo vai começando a costurar para algumas pessoas.

A grande amizade de Carlos com Emilson também foi costurada através da alfaiataria. Entre eles havia o hábito de troca de presentes. Isso sem falar das boas conversas sobre a vida durante os cafés de todo sábado de manhã na padaria. Nestas ocasiões a neta Melina muitas vezes ganhava pedaços de bolo, que apreciava com muito gosto.

Retrocedendo um pouco no tempo, “Zequinha”, apelido de Carlos na infância, veio do Paraná já na adolescência para terminar o colegial e fazer faculdade de Administração. Nesta época, morou na casa dos padrinhos, Walter e Maria, na capital de São Paulo. Uma de suas diversões preferidas eram as partidas de futebol com amigos. As peladas eram jogadas com bola de capotão, fabricadas a partir de couro curtido. No passar dos dias, tornou-se corintiano, paixão que, com o transcorrer do tempo, dividiu com os filhos Guilherme e Carlos André, além do genro Renato. E assim, os dias de jogos do Timão eram dias de confraternização no apartamento da família. Com bandeira na janela, eram muitos os gritos de felicidade e protesto.

Associado ao amor pelo clube paulista, houve inclusive um episódio inusitado, que parou o metrô de São Paulo por alguns instantes. Num dia de jogo na arena de Itaquera um dos ingressos caiu nos trilhos do trem na estação Itaquera. Para não perder um dos "tickets" que daria acesso ao estádio, Carlos e seus inseparáveis companheiros nas idas aos jogos do Corinthians, não tiveram dúvidas. Informaram ao segurança que precisavam pular no trilho para pegar o bilhete. Com os devidos cuidados e a assessoria do segurança o precioso ingresso foi resgatado. Quando os quatro voltaram para casa, o acontecimento foi contado e recontado em meio a muitas gargalhadas.

O amor pelo Corinthians era tão grande que, num dos aniversários de Carlos, o presente foi uma camisa do Clube. Com um toque todo especial, uma vez que, nas costas, em vez do nome dele, está escrito “Paizão”. A camisa hoje pertence ao genro Renato, marido de Caroline, uma vez que na família ele é o único que já é pai.

Sobre o modo como Carlos exerceu a paternidade há alguns pontos importantes a serem registrados. Ele não era muito de fazer as coisas pelos filhos, porque preferia ensiná-los a fazê-las. Neste pacote estão andar de bicicleta e de "skate"; usar furadeira, cuidar do nível de óleo do carro e saber identificar os sinais de alerta do painel do veículo; trocar pneu e consertar o chuveiro. Carlos sempre dizia que era importante “caminhar com as próprias pernas”.

A expressão “custo-benefício” era citada recorrentemente por ele. Acompanhada de um movimento das mãos da esquerda para direita, ele destacava a importância de saber avaliar o investimento feito e o resultado alcançado. Com os clientes da alfaiataria, muitas vezes sugeria alterações no acabamento de uma roupa, pois a forma desejada ficaria mais cara sem trazer tanta mudança na aparência da peça. Com os filhos, sempre ponderava que ficassem atentos às escolhas para que fossem bem-sucedidas. Enfim, Carlos foi dessas pessoas que buscou fazer o melhor possível em tudo que tocasse suas mãos.

Ainda no mundo do futebol, desde o ano 2000, com filho Guilherme, o assunto era colecionar figurinhas de álbuns das Copas do Mundo. Juntos os dois sempre conseguiam completar a coleção. Além da banca de revista da esquina, eles conheciam pontos de troca das figurinhas, que frequentavam ávidos pelas que faltavam. Houve vez de pagarem caro por apenas uma figurinha diante da dificuldade em encontrá-la. Na copa de 2022, com a ausência do pai, Guilherme manteve a tradição. E ficou feliz quando conseguiu completar o álbum e manter acesa a memória do pai.

Quando iam ao estádio, Carlos não deixava de tirar fotos e postar nas redes. Aliás, ele adorava fotografar tudo que considerasse belo ou interessante. Se visse um carro antigo, clicava. Se encontrasse alguém, outro clique; sem falar nas inúmeras fotos nos dias dos aniversários e encontros de família.

Caroline define o pai como “arroz de festa”, tamanho era o prazer dele em festejar com as pessoas de quem gostava. Na família, era o churrasqueiro oficial. E com seu jeito sociável e alegre, a responsabilidade de cuidar da churrasqueira era sempre dele. É que o tempero e o ponto de tirar a carne do calor da brasa eram perfeitos. Noutras situações, preparava uma mesa de aperitivos para os filhos, que saboreavam as delícias aos domingos, na beira da piscina.

Em situações completamente opostas, Carlos também gostava de prestar as últimas homenagens a quem falecia. Falando da morte, comumente ele dizia que “na vida a única coisa que a gente tem é essa certeza”. Assim, ele não deixava de comparecer aos velórios de parentes, amigos e pessoas que queria bem.

Um acontecimento muito pitoresco demonstra como Carlos era um homem de sorte. Dona Laura, a mãe dele, gostava de participar de promoções comerciais. Frequentemente ela preenchia cupons para participar de sorteios e colecionava selos para acumular descontos, entre outras coisas. Numa bela feita, um jornal paulista lançou uma promoção que sorteava um apartamento na Zona Sul. Curiosamente — e por essas coisas que ninguém explica —, nessa promoção Dona Laura preencheu cupons com o nome do filho. E, por mais incrível que pareça, ele foi um dos sorteados. Com um detalhe muito impressionante: a família foi comunicada do prêmio no dia da missa de sétimo dia de Dona Laura.

O homem que nunca dava um ponto sem nó viu o fio da vida terminar. E em meio a tantas costuras, ficaram boas memórias de alguém que segue como exemplo para os filhos. Embora ele não diga mais “eu estou aqui”, Carlos se faz presente nos muitos ensinamentos que deixou.

Carlos segue vivo na arrumação da mesa para as refeições, que fazia questão que estivesse sempre organizada; no ato de costurar do filho André; nos dias em que Renato tira do armário a camisa do Corinthians que herdou; nos “pés de galinha" de Melina; nos momentos em que Caroline ouve a música “Fio de Cabelo”, de Chitãozinho e Xororó, e se recorda das vezes em que ouvia a canção junto com seu querido pai; e nos desenhos colados nas bexigas de gás que a cada dia 20 colorem o céu de São Paulo.

José nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 61 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de José, Caroline Bento Machado. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 10 de novembro de 2022.