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Jose Claudio Nobre da Silva

1972 - 2021

Nas noites do sertão, quando menino, pintava o rosto com carvão para assombrar os irmãos.

Foi em Cipó, distrito Quixeramobim, Ceará, que José Cláudio nasceu mergulhado no sertão nordestino. Na casa simples, na rua de terra, no colo da mãe, chegou um menino que, ao longo de sua curta e intensa existência, foi virando um homem “vaidoso, muito cheiroso e o amor de toda a família”.

Juntamente com os irmãos Valdemir, Laerson, Laeilio, Valdir, Jocélio, Nilson, Gerlandio, Valdenila, Ivonete e Apoliana, José Cláudio, desde a meninice, enfrentou os desafios dos sertanejos. Houve dias em que a refeição foi somente farinha de mandioca e rapadura. A exemplo de José Cláudio, a maioria também deixou a cidade natal para morar em outras localidades. Nos reencontros, durante as visitas à casa dos pais, palco de luta coletiva pela sobrevivência, era sempre tempo de dar "um cheiro no coração". O certo é que no movimento cotidiano dos cuidados com a casa e os filhos, a mãe foi virando uma espécie de princesa para ele.

A casa, o quintal e a rua de terra eram espaços de brincadeiras e de folia na hora de jogar bola. A irmã Apoliana relembra que jogar futebol e a música eram paixões de José Cláudio desde a infância. Ela acrescenta que mesmo sendo “um menino desgarrado que logo buscou ganhar a vida, ele teve uma infância feliz”. Sorrindo, ela conta que quando a mãe saía de casa para ir assistir televisão na vizinha - porque a família não tinha condições de comprar um televisor -, José Cláudio “pegava um pedaço de carvão, pintava o rosto todinho e ia assombrar a gente”. Noutros momentos, como não havia dinheiro para comprar carrinhos, ele pegava as tampas de panela e as transformava em volantes e dirigia seu próprio corpo pela casa. Resumindo, Apoliana conclui que José Cláudio “foi um menino feliz que soube brincar com o que tinha para brincar”.

Por sua vez, o irmão Valdemir conta que tem poucas lembranças da infância do irmão. Ele recorda que José Cláudio era ainda um "pivete" quando, em busca de seus sonhos e de uma vida melhor, também deixou Quixeramobim. "Quando eu fui embora, ele tinha nove ou dez anos, se tivesse. Pelo fato de ele ainda ser muito novo, não me lembro dele no trabalho na roça junto com a gente. No máximo ele buscava água no jumento em um açude perto de casa" narra com seu sotaque marcante e voz compassada. Valdemir lembra, ainda, do dia em que o arteiro José Cláudio sofreu uma queda de um burro e "Estirpou a perna - como se dizia à época -, nesse incidente. Por disso, ele puxava a perna um pouquinho", complementa.

Para evidenciar a intensidade com a qual José Cláudio viveu seus 48 anos, sigamos na linha do tempo. Na esperança de uma vida melhor e no movimento de diáspora nordestina, ainda muito moço, ele deixou o sertão e foi para a capital, Fortaleza. Aos 16 já era pai de Francisco, criança que foi batizada sob as bênçãos de Ivonete, irmã que amadrinhou o menino. Depois, durante o transcorrer do tempo e de suas andanças, vieram Lucas, Ana Caroline, Ana Cláudia, Karla, Maria Cecília e por fim José Otávio.

Aos 17 foi para São Paulo, onde trabalhou como caseiro e, depois de conseguir a habilitação, atuou como motorista de caminhão. Durante o período em que viveu na capital paulista, em todas as viagens que fazia para visitar a família no Ceará, José Cláudio levava, na volta, uma especialidade culinária. Eram porções de Buchada de Bode, preparadas pela mãe e pelas irmãs, embaladas e congeladas. Ele levava tudo e vendia em São Paulo para complementar a renda.

Depois de um certo tempo ele voltou para sua terra natal. E o momento foi marcado por um acontecimento encantado. José Cláudio aprendera intuitivamente a tocar violão durante sua permanência na capital paulista. Com o instrumento do qual tirava a harmonia de suas canções prediletas, ele aproveitava para relaxar. Noutros momentos, encantava as pessoas e, com seu charme, encantava especialmente as mulheres, ao som de Tim Maia, Bruno e Marroni e de outros compositores e suas músicas falando de amor.

Pois bem, no dia da volta, na hora do embarque no aeroporto de São Paulo, José Cláudio estava com excesso de bagagem. Foi preciso tomar uma decisão difícil sobre o que deixaria para trás. E na escolha abriu mão de alguns importantes pertences para levar seu violão. Ao longo da vida chegou a ter três violões, que eram escolhidos de acordo com a ocasião.

Para o filho de dona Doca e seu Zelano, os pais eram sagrados. Já adulto, metade do salário-mínimo que José Cláudio recebia era repassado aos pais. Nem sempre em forma de dinheiro, mas com frutas, verduras, biscoitos que comprava com a intenção de complementar e reforçar a alimentação de seus queridos.

Durante toda a vida o hábito de pedir a bênção aos pais também era sagrado. Mesmo já adulto, como gostava de sair e curtir a noite, muitas vezes chegava em casa e acordava Dona Doca e seu Zelano só para pedir a bênção. Quando a esposa Magnólia indagava a razão para isso, calmo, ele dizia que “amanhã pode ser tarde, porque eu ou eles podemos não acordar”. Antes de dormir e ao despertar, sempre fazia suas orações com agradecimentos e pedidos referentes a cada um dos dias de sua vida.

O curto relacionamento de José Cláudio com Magnólia foi outro momento importante da vida dele. Ela lembra que a decisão de José Cláudio de se casar causou surpresa na irmã Ivonete, “porque pelo jeito dele ninguém achava que um dia ele fosse se casar”. Ela ficou intrigada com o fato de o irmão estar disposto a abrir mão da liberdade com a qual sempre vivera e perguntou o porquê. José Cláudio disse que “era amor”.

Referindo-se a José Cláudio como “um anjo em minha vida”, Magnólia lembra que o casamento foi meio às escondidas e apenas no cartório. É que ela estava saindo de um relacionamento abusivo e havia receio de que uma celebração na igreja pudesse gerar uma situação perigosa. Com o nascimento de José Otávio, que aconteceu pouco depois, o plano era que, no batizado do filho, celebrassem também o casamento religioso.

Pouco depois do casório, José Cláudio ficou desempregado e, então, o casal foi morar na casa dos pais dele. Nesta época ele sempre pedia a Magnólia " Cuide de meus pais que eu cuido de você. No dia em que você se amolar com alguma coisa que eles fizerem, fale comigo, mas não com eles”. Durante o período de desemprego, José Cláudio vendia de tudo um pouco para ganhar seu dinheiro. Milho verde, que buscava em Limoeiro do Norte, frutas, redes e bolachas. Depois conseguiu um novo emprego, de motorista.

Agradecida, Magnólia recorda que sua gravidez foi de risco e que “ele ficou grávido junto comigo”. Para que ela pudesse cumprir as recomendações médicas, ele se desdobrava entre o trabalho e o apoio a ela.

O amigo e poeta Gescélio conta que José Cláudio “era mais que um irmão”. Os dois sempre se encontravam para cantar. Às vezes ensaiavam o repertório que incluía MPB com canções que iam da Bossa Nova a composições de Zé Augusto e Zé Ramalho. Tudo ensaiado, os dois se apresentavam em bares ou eventos na cidade de Quixeramobim. Noutros momentos, faziam serestas ou tocavam em festas de família.

Importante dizer que José Cláudio também usava seu dom para tocar nas missas da Igreja de São Sebastião. Nos dias da festa do padroeiro da cidade, que acontece todo ano no período de 10 a 20 de janeiro, depois da liturgia, era hora de animar o “barracão” da igreja. Era lá que os fiéis se reuniam para a quermesse onde eram vendidos diversos produtos para arrecadar recursos para a paróquia, entre eles o tradicional vatapá.

Gescélio acrescenta que foram muitas conversas, cervejas e cantorias, “no barzinho próximo à represa”, muitas vezes depois de uma partida de futebol. Noutros momentos, “mesmo muito atarefado, ele passava lá em casa para aquela conversa e para cantar. Mesmo que fosse apenas uma música”. O último encontro dos dois aconteceu à distância. Na boleia do caminhão, carregado de postes de energia, enquanto passava, José Cláudio, ao avistar Gescélio, dedicou tempo para um aceno e um grito de “ei amigão”.

Uma lembrança da infância, trazida pela irmã Poliana, demonstra como a dimensão da fé foi sendo pavimentada no coração de José Cláudio. Era uma Sexta-Feira Santa. Nesses dias, Dona Doca reunia os filhos e dizia que não era dia de jogar bola. Sem titubear, José Cláudio devolvia “como assim mãe, joga sim”. E ela zelosa com a fé retrucava que o dia era sagrado e não podia. Desobedecendo as recomendações da mãe, certa vez, José Cláudio foi jogar bola. E numa jogada mais dura, machucou feio, provocando alvoroço entre os familiares no momento em que receberam a notícia. Dona Doca não poupou o filho e foi logo dizendo “eu falei com ele que Deus ia castigar”.

Graças à fé e aos valores aprendidos com os pais, José Cláudio era uma pessoa caridosa e disposta a ajudar a quem precisasse. O carro dele, que era seu ganha pão, sempre estava disponível para transportar pessoas em situações de necessidade.

Quanto a seu modo de se relacionar com as pessoas, ele não era do tipo que chegava e dava apenas um "oi". Expansivo e carinhoso, nos encontros com os pais, filhos, netos, amigos e outras pessoas de Quixeramobim, José Cláudio chegava, abraçava e envolvia a todos com seu jeito alegre. Desse modo, a cidade ficou comovida com seu falecimento e ele recebeu homenagens.

Uma delas do grupo de colegas do futebol, que já há algum tempo organiza a cada final de ano uma partida dos veteranos. No centro do campo da cidade, os jogadores, de mãos dadas, relembraram a figura de José Cláudio e rezaram por ele.

Outra característica marcante dele era o controle emocional. José Cláudio sempre dizia: "Não vou bater de frente com quem está com raiva. Porque não vai fazer bem para mim”. No modo de ver dele e usando uma figura de linguagem, José Cláudio resumia que “um homem com raiva é um bicho furioso”. Ele também escapava do que acontece nos lugarejos pequenos do sertão onde todos acabam por saber muito da vida de todos. Para fugir das fofocas e fuxicos, José Cláudio dizia que a vida dos outros não existia para ele. Se alguém vinha contar alguma coisa ele logo desconversava e não rendia conversa.

José Cláudio, o sertanejo que sempre carregou o sertão consigo, segue vivo, no som do violão que doou para o sobrinho André. No significado do cordão, anéis e aliança dele guardados com carinho pela esposa Magnólia. Na homenagem prestada através do poema “Querido Amigo”, escrito por Gescélio Coutinho, conhecido como "O Poeta do Sertão", que diz assim...

“Olhando para trás eu vejo
O tanto que tu tinha feito
Lembro de todos os momentos
Que chega a dá dor no peito
Doe tanto não lhe ver mais
Junto a Deus você estais
Você foi um par perfeito.

A sua sempre mão amiga
Fostes alento na agonia
Estava sempre sorrindo
Transpirando sua alegria
Jamais eu posso esquecer
Que um ser igual não vou ter
Que saudades da tua companhia.

Cláudio Nobre é o seu nome
Um ser que o sertão desbravou
Na busca por ganhar o pão
Seus esforços nunca cessou
Fazer amizade era o seu legado
Não deixava ninguém de lado
Quanto ensinamento você nos deixou.

Por fim sou grato a Deus
Pela sua linda existência
Que possas encontrar a luz
Pois amar foi sua essência
Estamos um pouco vazios
Os dias estão mais frios
Por conta da sua ausência.”

Jose nasceu em Quixeramobim (CE) e faleceu em Quixeramobim (CE), aos 48 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa e pelo amigo de Jose, Magnolia Holanda Nobre e Gescélio Coutinho. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 1 de março de 2023.