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José Garcia

1930 - 2020

Além de muito conhecido e respeitado, Vovô Caranguejo era um exímio contador de histórias.

A homenagem abaixo é do neto Fábio Mèratnas ao seu avô José Garcia, o Velho Caranga:

Vindo do século passado, desde 1930 e durante nove décadas, atravessou os tempos mais antigos e difíceis até os dias modernos.

Trabalhou a maior parte da vida com pecuária, esteve entre os criadores de gado da região onde vivia.

Também foi vaqueiro por muitos anos do Sr. Chico Viola, no Ximango, que ficava do outro lado do Rio Amazonas, bem à frente da orla da cidade de Juruti, e foi juteiro desde a idade em que o sistema econômico era o cruzeiro, o cruzado e em uma boa parte do real.

Presenciou a olho nu os movimentos da ditadura militar no Brasil, os tempos difíceis da malária e da febre amarela ou “Tosse de Guariba”, como a chamavam os antigos na época.

Desde jovem, trabalhou na lavoura para os tradicionais barões da juta: Sr. Chico Viola, Sr. Pedro Baranda, Sr. Dodó Carvalho e Sr. Mário Kobayashi, Dona Queiroz e Dona Pequenina Bororó. Também esteve na lida nas grandes matas isoladas da região do Juruti Velho, nas usinas de exploração de pau-rosa.

Então, algo muito inesperado aconteceu, e uma pandemia em 2020 levou o nonagenário José Garcia. Mas as histórias que ele me contava sentado embaixo do seu bacurizeiro ficarão eternamente guardadas na minha memória.

Sentado ali naquele banquinho ou deitado na sua rede velha tecida com fibras de juta, contou-me também sobre o dia em que a frente da cidade afundou.

Hoje o seu radinho não toca mais bem alto às cinco, seis horas da manhã, não vejo mais aquele sorriso alegre pelo quintal nem ouço mais aquela voz brincalhona me chamando; mas lhe sinto a todo momento, vô, e ainda escuto o senhor chegar na porta de casa e dizer: "Me dá um gole de café, só café!" Sempre dizia que queria viver por mais uns mil anos... E, sim, o senhor viveu por mil anos, meu velho.

Na véspera de Natal acordei com saudades. Levantei-me cedo e veio aquela vontade habitual de conversar com o meu avô. As lembranças jamais se apagarão. Quando entro, depois do portão, vejo apenas sua imagem onde conversávamos e me contava suas histórias de vida. Sempre fui o seu ouvinte e o seu espectador, e agora é o meu eterno contador de histórias.

O maior legado, deixado pelo senhor, é o orgulho e o privilégio de ser seu neto e de chamá-lo de avô!

José nasceu em Juruti (PA) e faleceu em Juruti (PA), aos 90 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo neto de José, Fábio Sousa Santarém (Fábio Mèratnas). Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Paola Mariz e moderado por Rayane Urani em 28 de janeiro de 2021.