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José Haroldo da Silva Pereira

1971 - 2020

Não teve filhos, mas foi pai com um coração do tamanho do mundo para os enteados.

Mesmo marcado pelo abandono na infância, com maestria transmutou tudo em amor. E esse se tornou o seu maior ensinamento.

Quando tinha apenas dois anos, seu pai deixou a família e nunca mais voltou. A infância foi difícil. Trabalhou um tempo na roça, depois numa loja de sapatos. Ainda no Ceará, onde nasceu, conheceu Carmelita, na época uma jovem mãe com quatro filhos. De imediato se apaixonou por todos, pela mulher e pelas crianças: Dayane, Diego, Muriely e Priscila. Costumava dizer que não precisou ter filhos de sangue, pois os filhos dela eram os seus filhos do coração.

Saiu de Fortaleza e decidiu fazer a vida em São Paulo. Levou todos. De início, tinha dois empregos simultâneos e Carmelita também trabalhava fora, empenhados que estavam em construir a nova vida. Enquanto ela costurava, ele se especializou em segurança.

Haroldo, ou Cabeça, seu apelido, era um homem simples que gostava de ficar perto dos amigos, ter a casa cheia, brincar com os netos e curtir os finais de semana na casa de praia em Peruíbe. Adorava comer. Chegou a passar fome na infância, daí que valorizava qualquer tipo de comida, embora cuscuz e baião fossem o ponto alto.

Mimava os netos trazendo doces. Nas folgas, gostava de ficar deitado na rede, assistindo aos desenhos animados com eles. Pablo, Kawe, Levy, Hugo, Hismi, Mirely, Hiago, Samuel e Sara eram também uma grande paixão. Aos 49 anos já era bisavô do Davi.

Gentil, incrivelmente amoroso, respeitado; por onde passava era cumprimentado e retribuía com um sorriso feliz. Não julgava, só aconselhava. Dayane, a filha mais nova, conta que quando ele a chamava para uma conversa séria, doía mais do que um tapa. Pois ele sabia ser firme quando precisava, calcado na sabedoria de quem educava no amor. Trazia boas palavras em relação a qualquer assunto da vida. Costumava repetir que o ser humano pode errar, mas não deve conviver com o erro; deve aprender, mudar e melhorar a partir dele. “Nem com as melhores palavras vou conseguir descrever meu pai”, afirma Dayane.

Seu principal emprego foi como coordenador de segurança por dezesseis anos na empresa de terceirização de serviços Verzani e Sandrini. Fazia o turno da noite, das 18h às 6h. Nunca gostou de trabalhar durante o dia. Como um cavaleiro dos romances medievais, preenchia os espaços silenciosos da madrugada escrevendo cartas de amor cortês que entregava para a amada ao raiar do dia, junto com o pão quentinho que trazia para o café.

Foram vinte e oito anos de casamento. Durante esse tempo, Carmelita testemunhou a determinação de Haroldo na busca de reencontrar seu pai que, segundo algumas informações, já havia morrido. Mas ele nunca desistiu. Chegou a participar do programa do Gugu, na esperança de obter ajuda. A persistência deu frutos. Em 2015, soube que seu pai estava vivo, morando na zona rural de Alenquer, no Pará. Foi ao encontro dele, que também o recebeu de braços abertos, realizando um sonho de vida. Desde esse momento restaurador, visitava o pai sempre que podia e quando estavam juntos não parava de abraçá-lo. Com humor, dizia que tantos abraços eram para compensar as lacunas do tempo em que ficaram distantes. Regido pelo amor incondicional, nunca quis saber o motivo pelo qual seu pai o havia abandonado: "O que importa é o reencontro", dizia.

Carmelita se emociona ao se lembrar do marido. “Se eu fosse escrever um livro, só teria momentos felizes para contar, nunca brigamos, ele sempre estava bem, era um homem digno, de semblante sereno, de muita paz”.

José nasceu em Fortaleza (CE) e faleceu em São Paulo (SP), aos 49 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de José, Dayane Lopes. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Bettina Turner, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 26 de novembro de 2020.