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José Mário Ferreira da Silva

1959 - 2020

Um caminhoneiro de sorriso largo e energia contagiante, que marcou muitos corações pela estrada da vida.

Aos 60 anos, nem se passava pela cabeça de Zé Mário se aposentar. Cheio de sonhos e sempre disposto a tentar de novo, o desejo dele era deixar ainda algumas coisas para os filhos — Fabio e Fabiana — e seus queridos netos. Entre essas coisas, dedicar tempo, cuidado e boas doses de risadas não poderiam faltar na lista. Planejava também desfrutar muito mais anos além dos 42 já vividos ao lado de sua amada companheira de tantas lutas e conquistas, Maria Conceição Almeida.

Apesar da vida desafiadora e muitas vezes sofrida de caminhoneiro, Zé Mário não subia no caminhão sem estar sorrindo e amava a profissão que passou grande parte da vida exercendo. As viagens de 3 mil km eram moleza para ele, que nunca reclamou dos trajetos longos nas estradas e em nenhum momento passou a sensação de fazer por obrigação. Sempre foi grato ao trabalho que deu condições para sustentar a família que tanto amou.

Agradecer, na verdade, fez parte da essência dele. Homem de muita fé, foi grato principalmente a Deus por guardá-lo tanto e pela generosidade que sempre demonstrou para com ele. José Mário dizia sempre: “Tudo isso não é sorte, é Deus”.

Depois de dez dias na estrada, assim que retornava ao seu lar sempre dizia com satisfação: “Nem acredito que estou no meu paraíso”. As suas chegadas também eram marcadas pelos churrascos em que convocava a família, porque para ele era um prazer reunir seus familiares. Esses encontros eram também um agradecimento em comemoração à sua chegada e uma despedida pela volta à estrada.

Os fins de semana agora não são mais os mesmos e nem têm o peso da alegria contagiante que Zé Mário distribuía.

O amigo de dar risadas de Fabiana assim que chegava das viagens, guardava o caminhão e corria para a casa da filha para matar a saudade. Quando encontrava Fabiana triste, relembrava a ela a importância de ser grata, pois ele sabia o quanto era preciso enxergar a generosidade da vida mesmo quando tudo estivesse ruim.

“Hoje, quando penso em desanimar, lembro como meu pai gostaria que eu estivesse aqui. Eu tento por ele”, afirma Fabiana.

Como um anjo da guarda que esteve presente nos momentos mais duros, em um episódio que marcou a vida de toda família — a despedida precoce de dois de seus netos gêmeos Lucca e Leo — esse avô e pai onipresente se tornou o amparo para a filha que precisou de uma força sobre-humana para prosseguir. Se desligou por 60 dias das viagens para dar o apoio necessário à Fabiana.

E veio a se alegrar mais tarde com a chegada da primeira neta, que trouxe luz após um episódio tão sombrio. Grazi foi muito mimada por seu avô durante os um ano e oito meses que ele conseguiu desfrutar ao lado da neta. Mesmo sem a presença dele, ela ainda dá gargalhadas ao ver as fotos e associar à figura engraçada e amorosa de seu vovô.

Além da pequena Grazi, as riquezas que ele deixou nesta terra se chamam João Vitor, José Vinícius, Pedro Henrique, Guilherme e Caio. Tinha um afeto imenso pelos pelos netos. Quando pescava no tanque artificial perto da casa dele, fazia questão de limpar, fritar e tirar o espinho para a criançada. Com a perda dos pais muito cedo, ele virou um paizão para as três irmãs. Se dividia entre os filhos e o zelo com elas.

É difícil decifrar a potência que José Mário carregava consigo. É unânime entre sua família que o amor é igual por todos os membros, mas alguém que arranque um pedaço tão grande do coração de cada um como ele vai ser difícil. Sabe aquela pessoa que todos se sentem à vontade? Era natural ser tão querido, Zé Mário não se esforçava — apenas era. A luz dele era diferente, irradiava em proporções que não se consegue medir.

Quem se juntou a família, como o genro Moisés e a nora Juliana, garantem o tratamento especial que ele deu a quem o rodeava. Fez de Moisés um grande amigo e companheiro; e da nora Juliana, uma parceira de brincadeiras e risadas.

Por onde andou e com quem conviveu deixa um rastro de saudade. Na vizinhança de pouco mais de 28 mil habitantes em Pilar do Sul (SP), era muito conhecido e abateu a cidade toda com sua partida. Na estrada, os novos caminhoneiros que tinham José Mário como uma referência na profissão e aprenderam muito com sua experiência, hoje levam o aprendizado deixado por ele do significado de levar a profissão com seriedade. Mas em especial para seu filho Fabio, que seguiu a profissão do pai, a zona de luto se tornou a estrada, principalmente a mesma rota que faziam: de Pilar do Sul a Belém.

Como não poderia deixar de ser, até em seus últimos momentos conquistou quem estava ao seu redor. Foram 35 dias contagiando a equipe de médicos que cuidavam dele, era considerado um guerreiro na UTI por ter resistido tanto.

Nunca deixou de estar presente por mais que as viagens o distanciasse fisicamente por um tempo da família. Com a esposa, falava mais de quatro ou cinco vezes ao dia por telefone. Mesmo longe, resolviam tudo juntos.

“Por mais que ficava muito tempo longe, ele chegava. Agora, não mais”, expressa Fabiana sobre a insubstituível presença do pai.

O último beijo que mandou por chamada de vídeo — onde encontrou forças depois de 30 dias internado para mexer os lábios bem devagarzinho —representará para sempre o carinho que nunca deixou de dar mesmo nas horas mais difíceis.

Um homem de riso fácil e sorriso largo, otimista, generoso e que amou viver sua jornada. Sem dúvida, é a lembrança mais bonita que aqueles que o amam eternizaram em seus corações.

José nasceu em Pilar do Sul (SP) e faleceu em Sorocaba (SP), aos 60 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de José, Fabiana Ferreira Sales. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Júllia Cássia, revisado por Gabriela Carneiro e moderado por Rayane Urani em 16 de setembro de 2020.