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José Pereira Frutuoso

1939 - 2020

Aos 17 anos, embarcou num navio e, com um único par de sapatos nos pés, mudou-se para o Brasil.

Ele queria ser feliz, e sua felicidade, durante boa parte de sua vida, esteve de dois lados do oceano. Nas distâncias marítimas percorridas, José sempre levou consigo honestidade, simplicidade e um grande amor pela família, uma relação que também teve o Oceano Atlântico como ponto de conexão.

Essa história de 81 anos começa na pequena Santar, vilarejo rural português. Um dos oito filhos de Antônio Pereira e Maria da Conceição, José nasceu e viveu a infância e a adolescência numa casa simples com quarto, sala, cozinha e banheiro. Os dez habitantes da casa dividiam os espaços, o trabalho, as refeições e um carinho mútuo por cruzar o oceano.

Na cidadezinha natal, José trabalhava na casa do conde e da condessa de Santar. Fazia de tudo um pouco na propriedade da família mais rica da região. Entre as atividades agrícolas, estava o plantio e a colheita de batatas e o cuidado com as parreiras e a produção de vinho. Em decorrência da necessidade de começar a trabalhar muito cedo, ficou na escola somente até a quarta série do ensino fundamental.

Foi num dia de 1959, com apenas 17 anos, que, inconformado com a obrigatoriedade do alistamento militar no exército de Portugal, José embarcou num navio rumo ao Brasil. Com ele, poucas roupas, o único par de sapatos nos pés e as economias que fizera. No navio viajavam, ao mesmo tempo, as memórias do lugar que deixava e o sonho de tempos melhores.

Na chegada ao Rio de Janeiro, foi acolhido pelas irmãs Augusta e Lívia, bem como por seus maridos, que moravam no bairro de Santa Tereza, na capital carioca. Logo conseguiu um emprego e era da casa dos parentes que saía todos os dias para trabalhar numa lanchonete da rua Santa Luzia, na região central do Rio, próximo à Cinelândia.

Uma pausa na rotina intensa de muito trabalho aconteceu dez anos depois, quando José retornou a Portugal. Ele já tinha conseguido alguma estabilidade no Brasil e foi rever os familiares portugueses. Na viagem, brotou o amor por uma portuguesa filha de uma família amiga. Em apenas seis meses, José e Maria da Luz namoraram, noivaram e casaram. Na volta ao Brasil, ele ainda veio sozinho com a missão de preparar tudo para receber a querida esposa.

Depois de um tempo, pelas mãos de um contador que percebeu nele muita garra e potencial, José foi convidado a tornar-se sócio de uma rede de restaurantes do Rio. Desde então, a rotina dos afazeres na casa comercial acompanhou-o pelo restante de sua vida. No restaurante, localizado à beira mar na Urca, a figura do “Seu Zé”, como era chamado pela maioria dos clientes e vizinhos, era presença marcante na operacionalização da casa. Ele gostava tanto do trabalho que, mesmo depois de sua aposentadoria, manteve o restaurante funcionando.

Homem honesto e de palavra, José era muito respeitado por todos. A palavra dele era tudo, mas, se em algum momento fosse necessário formalizar um acordo em documento, no campo destinado à sua assinatura, ele grafava com sua letra peculiar as iniciais de seu nome completo, José Pereira Frutuoso. Assim, ler “JPF” era garantia de que tudo iria ser cumprido.

Um exemplo disso acontecia no cotidiano do restaurante. Ele nunca foi de ficar somente no escritório cuidando da burocracia. Gostava mesmo era de estar na linha de frente, da operação da casa e do contato direto com os clientes, com quem gostava de conversar até altas horas. Se algum freguês pedisse para fazer uma refeição sem pagar, por estar com pouco dinheiro no bolso, invariavelmente ele concordava. A comanda de consumo era preenchida normalmente, com um detalhe a mais: no verso, assumindo a responsabilidade por um eventual calote, assinava “JPF”.

O respeito aos outros era marca pessoal dele. Não tratava diferente nenhuma pessoa, por nenhum motivo. A todos com quem se relacionou, ofereceu escuta atenta e amorosa, estando sempre disponível para acolher aqueles que pediam conselhos ou algum favor. Por outro lado, a figura e a presença de José, por si só, impunham respeito. Por essa razão, nunca precisou se comunicar de forma autoritária e manifestava seu ponto de vista com clareza e tranquilidade. Foi assim com empregados e sócios do restaurante e com vizinhos, amigos e familiares.

Na simplicidade de seus modos, José Frutuoso nunca fez questão de luxo ou grife. No dia a dia do trabalho, bastava uma camisa de tricoline, sempre bem passada, e uma calça social em cores sóbrias. No bolso, sempre uma caneta esferográfica, pronta para ser usada em suas anotações e assinaturas. No rosto, sempre um sorriso afável que cativava a clientela.

A prosperidade nos negócios não afastou José da simplicidade. O estilo simples também marcou a construção de uma casa no bairro carioca de São Cristóvão. Com seus três pavimentos, a casa, que foi abrigo para muitos momentos felizes, enfeita uma esquina do bairro com sua fachada pintada em amarelo e branco. O imóvel segue como morada da esposa, Maria da Luz, e de mais dois frutos preciosos para José: a filha, Vera, e a neta, Clara.

A relação de proximidade e cumplicidade entre Vera e seu pai fez dos dois bons amigos. Bastava um olhar e José já sabia que a filha tinha um problema. Nesses momentos, ele a chamava para conversar e dava seus valiosos conselhos. Na intenção de dar início à conversa, assim que percebia algo diferente, dizia: “Hoje o dia não está bom, não é, filha?”. Se percebesse que algo pudesse dar errado, logo a alertava e apresentava alternativas, mantendo sempre um viés positivo em suas falas. Vera conta, emocionada, que, depois do falecimento do pai, sentiu-se perdida por não poder mais trocar opinião com ele.

A filha recorda com carinho do tempo em que preparava o casamento dela com Marcus. O pai sempre perguntava se estava tudo certo e se era aquilo mesmo que ela queria e apoiava-a no que fosse preciso. Quando nasceu Clara, o avô, que trabalhava à noite, foi quem praticamente criou a menina. Ele brincava, levava para passear, buscava na escola, cuidava de tudo juntamente com a portuguesa que conquistou seu coração. Eram todos tão próximos que Marcus trabalhava com o sogro no restaurante e, depois de seu falecimento, assumiu a gestão da casa.

A relação de José e Maria da Luz, que começou do outro lado do Atlântico, seguiu sempre repleta de amorosidade e mimos. Nas manhãs, durante os quarenta e nove anos de relacionamento, era comum encontrar o casal em suas caminhadas nos jardins do Parque da Quinta da Boa Vista. Durante a troca de passos, ele fazia questão de compartilhar com ela tudo sobre os negócios — e muito mais.

Em datas especiais, o esposo amoroso gostava de presentear Maria da Luz com um ritual que quase sempre se repetia. Ele comprava uma joia, por exemplo, e escondia em um bolso de um de seus paletós. No momento da celebração, dizia que não tivera tempo de comprar nada e só um tempo depois, com todas as pompas e mimos, trazia o presente.

Entre os momentos marcantes na memória de Vera, está a presença de José na festa de 15 anos da neta Clara. Durante a celebração, a moça fez uma homenagem aos pais, padrinhos e avós. Todos se emocionaram com as palavras de carinho que dedicou ao avô, na recordação de todos os cuidados que recebera dele desde o nascimento.

Como bom português, José era torcedor do Clube de Regatas Vasco da Gama. Quando o clube caiu para a segunda divisão, bem humorado, brincava que já não era mais vascaíno e que passara a torcer pelo São Cristóvão, clube com sede no bairro onde morava. O certo é que, nas incontáveis idas ao estádio de São Januário, José levou a toda a família o amor pelo seu time do coração. A filha Vera conta sorrindo que ele “me fez gostar do Vasco, mas não conseguiu me fazer torcer pelo Sporting Clube de Portugal. Mas a Clara torce para os dois times do avô”. A origem portuguesa também marcava a rotina culinária. Maria da Luz preparava deliciosas bacalhoadas, que muito agradavam a todos da família. O hábito de beber vinho durante as refeições também era constante.

No aniversário de 80 anos, a paixão de José pelos clubes esteve presente. Já sabendo que iria ter alguma festa, na antevéspera José disse: “não inventem ideia”, ou seja, não façam festa. Contudo, o amor de todos por ele terminou num canto decorado como o “Boteco do JPF”. Sobre a mesa, um bolo e uma placa com o “Menu do dia”, onde se lia “amigos reunidos, boa conversa, música animada”. Durante a comemoração, ele fez questão de trocar de camisa três vezes. Usou as dos uniformes do Vasco da Gama e da Seleção Portuguesa e, por fim, uma camisa comum.

A lembrança da simpatia, da amorosidade, do bom humor e da amizade de Seu Zé foi marcada por duas homenagens. A primeira aconteceu no restaurante, no sétimo dia do falecimento. Muito querido por muita gente, nos diversos papéis sociais que desempenhava, a celebração reuniu familiares, clientes, funcionários e outros amigos, que fizeram um minuto de silêncio em sua homenagem. No dia, a filha fez questão de usar uma camisa branca pertencente a seu pai, com os escritos “Exemplo e Parceiro e Amigo e Pai e Avô”. A segunda homenagem marcou um ano do falecimento de José. Sua filha, seu genro e sua neta fizeram uma manifestação silenciosa na beira da praia, bem em frente ao restaurante. Juntos, jogaram flores no mar, que sempre esteve lá, como se, a cada onda, abençoasse o comércio de José.

Antes de terminar este tributo, é importante dizer que José teve uma outra casa, erguida à distância em Santar, Portugal. Ele ia mandando o dinheiro, e a cunhada, Maria Elizabete, cuidava de tudo até a morada ficar pronta. Assim, tendo sua casinha no além-mar, praticamente todos os anos ele cruzava o oceano e ia visitar seus amores portugueses.

José Pereira Frutuoso segue vivo nos frutos que plantou e colheu nessa vida; nas duas casas portuguesas que construiu; nas praias banhadas pelo Atlântico, que conectam sua teia de afetos luso-brasileira; e nas tatuagens com as iniciais "JPF" feitas nos braços de Vera e Clara.

José nasceu em Santar (Portugal) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 81 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de José, Vera Lúcia dos Santos Pereira Corral. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Débora Spanamberg Wink e moderado por Ana Macarini em 6 de março de 2022.