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Liliane Sousa de Lima

1969 - 2020

Por pura solidariedade, comprava perfumes de sua mãe e bolsas de sua amiga, mesmo que nem estivesse precisando.

Nascida no Flamengo, Lilla viveu na Rocinha até os sete anos de idade. Junto aos amigos, aos pais e aos irmãos, viveu uma infância muito feliz. Divertia-se muito no dia de São Cosme e Damião, quando as crianças saíam às ruas para receber doces. Nesse dia, não parava em casa. Também gostava de passear com os pais, ir às praças e divertir-se nos brinquedos. Mas sua grande paixão era frequentar a praia de São Conrado. Quando se mudou para Nova Iguaçu, na época uma cidade mais tranquila e menos habitada, sentiu tanta saudade da praia e dos amigos que chegou a adoecer.

Seu grande sonho de criança era ser Chacrete. Ensaiava os passos de dança no espelho, sonhando em um dia também compor o corpo de baile. Num passeio da escola, teve a oportunidade de visitar os estúdios do programa e satisfazer um pouquinho do seu desejo.

Na adolescência, Lilla era muito cobiçada pelos rapazes do bairro onde morava. Mas quem conquistou o coração da garota foi Maurício, o grande amor e sua vida. Diz a história que ele, na primeira vez que a viu, comentou com um amigo: “ainda vou casar com essa menina”. Maurício foi reprovado de início pelo pai de Lilla. Chegaram a noivar escondidos no Pão de Açúcar, mas logo foi aceito pela família. Na época do namoro, tinham o hábito de trocar cartões, repletos de juras de amor e planos de casamento. O casamento religioso, de fato, nunca aconteceu, mas viveram juntos uma verdadeira história de amor. Por vezes, o medo de perdê-lo causava em Lilla algumas crises de ciúmes. Diferente da família, que a chamava de Lilla, Maurício apelidou a esposa de Jocasta, em razão da personagem da atriz Vera Fischer em uma novela, provavelmente pela semelhança física entre elas. Juntos, tiveram uma filha, Thaís. O marido faleceu quando Thaís tinha 17 anos. A filha guardou com carinho os cartões que contam a história de seus pais.

Lilla amava as datas comemorativas. Na Páscoa, fazia questão de comprar ovos de chocolate para toda a família, inclusive para simesma. Cada um dos irmãos ganhava um belo ovo. Quando o orçamento estava apertado, não deixava de presentear aqueles que gostava, nem que fosse com uma caixa de bombom. Essas datas, assim como casamentos e aniversários, eram sempre motivo para reunir a família, coisa que Lilla gostava muito, já que tinha uma relação muito próxima com os irmãos, de muita amizade e companheirismo. Empolgava-se quando havia uma festa para ir. Comprava kits de festa nos aniversários ou planejava uma ida a um restaurante com toda a família. E sempre organizava tudo com a antecedência, para nada dar errado. E chegava pontualmente no horário marcado. Amava dançar nas festas e era sempre a mais animada na pista de dança. No casamento da filha, dançou como se não houvesse amanhã.

O Natal era uma de suas datas preferidas. Um dos motivos eram os panetones. Logo que as lojas começavam a vender, Lilla já comprava algumas unidades. Não economizava para satisfazer sua vontade. “Essas coisas são só uma vez ao ano, tem que aproveitar”, dizia. Nem conseguia esperar a data para saborear. Abria as caixas logo no início de dezembro e ia degustando aos poucos. Além dos panetones, gostava também de goiabada cascão e de pêssegos em calda com creme de leite. De criança até a vida adulta, sempre comeu pipocas doces, dessas de pacotes, compradas em lojas de guloseimas. Mas sua grande paixão eram os sorvetes, principalmente o sabor Napolitano. Acabava com um pote em dois dias quando comprava.

A filha lembra com saudade do tempero de Lilla. As melhores memórias da infância eram quando chegava da escola e havia um almoço preparado pela mãe. Apesar de não gostar muito de cozinhar, caprichava na preparação, pois sabia como a filha gostava. O strogonoff, o arroz fresquinho incrementado com cenoura cortada miudinha e o feijão temperado na hora ficaram na memória de Thaís. Mesmo depois de a filha já estar casada, Lilla fazia questão de preparar uma comida especial quando Thaís ia visitá-la. Seu mousse de maracujá, é uma sobremesa inesquecível.

Acompanhava a filha em todas as reuniões, festas e eventos da escola. Nos aniversários de Thaís, era praxe a criança levar à escola um doce para a turma. O bolo de cenoura de Lilla era uma tradição nessas datas. Sempre gostou de conhecer os amigos e amigas da filha e lembrava o nome de todos eles, mesmo aqueles da infância.

Curiosamente, apesar de não gostar muito de cozinhar, tinha como hobby colecionar revistas de receitas e marcar aquelas que tinha vontade de testar. Folhear as revistas lhe divertia mais do que de fato reproduzir as receitas. Mas, quando testava, normalmente o resultado era positivo. Um delicioso pavê de limão feito por ela foi a prova disso. Também anotava muitas receitas de programas de TV.

Muito sensível, chorou de emoção quando a filha tirou a habilitação. A moça deu a notícia como uma surpresa durante a ceia de Natal. Essa etapa trivial na vida de muitos, para Lilla representou uma grande conquista, já que ela e o marido nunca tiraram habilitação ou tiveram um carro.

Do signo de peixes, era apaixonada por água. A distância da cidade onde morava não lhe permitia ir à praia tanto quanto gostaria. Mas quando recebia sua prima de Minas Gerais como visita, aí dava um jeito de ir visitar o mar, principalmente a praia do Arpoador, onde passava o dia todo. Segundo a filha, voltava um camarão de tão vermelha. Também aproveitou muito a piscina do condomínio da filha enquanto ela morou lá.

A mãe de Lilla conta que, desde criança, quando passavam de ônibus pelos prédios, a pequena ficava encantada com as construções, apontando: “apartamento! apartamento”. Nessa época, não perdia a oportunidade de ir ao apartamento de sua madrinha, em Ipanema. Dona de uma personalidade muito calma, tranquila e reservada seu sonho era morar em um. Dizia que era só “fechar a porta, ficar dentro de casa, e tudo ficar tranquilo”. Mas não chegou a realizar seu desejo, já que sempre priorizou viver perto dos pais. Tinha uma relação amistosa e educada com os vizinhos e era muito querida, mas a intimidade era reservada para sua família e poucos amigos, como a sua manicure, que tornou-se uma grande amiga.

Era conhecida por suas crises de riso. Quando ouvia alguma coisa engraçada, principalmente nas reuniões de família, desatava a rir e não parava mais, com sua risada gostosa que era sua marca registrada. Seu rosto branquinho chegava a ficar vermelho. E não havia quem permanecesse sério nesses momentos. Sua risada contagiava a todos e acabavam todos dando uma boa gargalhada também.

Lilla trabalhou como operadora de caixa em diversas lojas e mercados. Apesar da rotina pesada, principalmente no final de ano, gostava muito do ofício. Trabalhava em uma famosa loja de variedades quando engravidou da filha Thaís. Na época, sentia muito desejo de sorvetes e picolés. No intervalo do trabalho, lá sempre estava Lilla com um sorvete na mão.

Além do trabalho, Lilla gostava muito de passear. Sua caminhada diária logo pela manhã era de lei. Quando tinha a oportunidade, também amava viajar, hospedar-se em pousadas com muita área verde, um farto café da manhã e uma bela piscina. Viajou sozinha para Penedo, para conhecer a cidade histórica. Também gostava de visitar uma prima, que morava no bairro do Campo Grande, no Rio de Janeiro, na época da juventude.

Mas suas viagens inesquecíveis foram as que fez na companhia da filha, do genro e de seu irmão. Juntos, conheceram Búzios e Itamonte, no sul de Minas. Nessa viagem, graças a uma peripécia da cachorrinha Lola, a cadelinha quase foi levada pela correnteza, mas foi salva pelo irmão de Lilla; essa aventura ficou para a história. Como acabou tudo bem, anos mais tarde ainda se recordavam e riam dessa história. Lilla sempre lembrava de pequenos detalhes dessas viagens e fazia questão de comentar com o casal sobre os momentos mais marcantes, de um jeito saudoso.

Em todos os passeios, viagens e momentos especiais, gostava de fotografar tudo a todo instante. E quando não estava presente nos passeios da filha ou da família, fazia questão de ver todas as fotos no retorno, ou de receber as fotos por mensagem enquanto eles estivessem lá, como uma forma de estar presente naquele momento. Antes da chegada das câmeras digitais e dos celulares, registrava tudo em câmeras comuns de filme e, após revelá-los, montava pequenos álbuns de cada um dos passeios e viagens para guardar a recordação.

Sempre foi muito cuidadosa com sua casa, mas a cozinha era o ambiente com o qual tinha mais zelo. Mantinha o local sempre muito limpo. Gostava muito de colecionar imãs de geladeira. Toda viagem ou passeio que fazia trazia um imã de recordação, de modo que sua geladeira era repleta de memórias. Gostava também de joguinhos de pano de prato, paninhos bordados para cobrir eletrodomésticos, enfeites com galinhas, vaquinhas e pinguins feitos de cerâmica, tudo para tornar sua cozinha mais bonita e aconchegante.

Foi uma filha exemplar. Nunca poupou esforços para ajudar e apoiar seus pais. Morava no mesmo bairro deles e, seja o que fosse que os pais precisassem, desde ajuda na cozinha até com as tarefas bancárias, estava sempre pronta para ajudar. Era a melhor amiga de sua mãe. Caminhavam juntas pela manhã, passeavam no shopping, faziam compras, principalmente bolsas e calçados, que Lilla amava; e, às vezes, faziam hidroginástica no mesmo dia e horário. Os almoços de domingo eram sempre na casa dos pais de Lilla. Sua mãe tinha o hábito de ir à igreja domingo de manhã, Lilla já ia cedo à casa dos pais e começava a preparar o almoço. A mãe deixava o frango apurando o tempero, desde a noite anterior, e Lilla assumia desse ponto. Cozinhava o frango, preparava o macarrão e os demais acompanhamentos. Tinha uma mania de sempre beliscar uns pedacinhos de frango antes de todos chegarem. Macarrão com frango ensopado era o prato de lei de todo domingo. Depois da refeição e do cafezinho, que Lilla adorava, ficavam todos por lá, durante quase todo o dia, descansando, conversando e divertindo-se juntos.

Muito religiosa, foi batizada na igreja evangélica, a qual frequentava pelo menos duas vezes por semana. Fazia parte do grupo de obreiras e ajudava a servir a santa ceia. Dessa fé, derivava um otimismo e uma certeza de que tudo sempre daria certo, mesmo em momentos difíceis. Com seu jeito doce, transmitia essa fé e essa positividade com uma palavra de apoio a todos da família quando precisavam; ajudava-os por vezes sem se fazer perceber: comprava perfumes e cosméticos revendidos por sua mãe, mesmo sem precisar deles naquele momento, apenas para ajudá-la. Ofereceu-se para complementar as mensalidades da faculdade de Thaís, e ajudou a pagar a festa de casamento de sua filha com o genro, Marcelo. Também comprava bolsas de sua manicure e amiga, também para ajudá-la. Contribuiu para que o genro pagasse sua faculdade. Queria sempre o bem de todos à sua volta.

Gostava muito de frequentar restaurantes à quilo, mas não dispensava um McDonald´s em suas idas ao shopping. Dizia que ir ao shopping sem lanchar não era um passeio completo. Seu prato preferido era strogonoff. Gostava tanto do de carne quanto do de frango. Comia quando ia a restaurantes, mas também gostava de preparar para toda a família num desses encontros cheios de alegria que faziam. Também curtia frequentar pizzarias ao lado de seus pais e de seus irmãos.

Lilla tinha algumas manias e peculiaridades que eram só dela. Uma delas, que faz a filha Thaís sorrir quando lembra, era o hábito de dormir sempre com um tapa-olho. Mas não um tapa olho comum, desses comprados em lojas. Gostava mesmo de usar uma camiseta velha que, de tão usada, acabou virando um retalho, mas Lilla nem ligava, gostava de dormir no escuro total.

Também tinha mania de colecionar cadernetas e usá-las para anotar receitas, pensamentos, orações, listas de compras, parcelas de financiamentos e o que mais quisesse registrar. Outra peculiaridade sua era reagir com espanto exagerado sempre que alguém contava uma novidade. Thaís explica que ela fazia uma expressão de surpresa, arregalava os olhos e repetia “O QUEEE?? O QUEEE???”, divertindo a todos. Também era típico de Lilla repetir as frases, principalmente quando estava dando uma instrução. Quando acabava a frase, respirava, e começava tudo de novo.

Esses detalhes triviais, que só conheceu quem de fato conviveu com essa mulher tão especial, ficarão marcados para sempre na memória daqueles que a amavam.

Liliane nasceu em Flamengo (RJ) e faleceu em Nova Iguaçu (RJ), aos 51 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Liliane, Thaís Lima Cardoso. Este tributo foi apurado por Marina Gabriely, editado por Marília Ohlson, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 1 de abril de 2022.