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Lourenço de Sousa Costa

1952 - 2020

A cara séria era disfarce do coração generoso de quem só veio para plantar o bem e para amar os netos infinitamente.

Saiu do Nordeste para ganhar a vida sozinho na cidade grande, voltando quando podia pra visitar a família. Até que em 1988 conseguiu buscar a esposa e os filhos.

A união com Dona Delcina conservava-se com muito amor e cumplicidade por cinquenta anos, entre noivado e casamento. Pai de Elenilde e Edilson, adotou também Weslley. Na verdade, como conta a filha, Weslley é afilhado de seus pais e a mãe dele passou por uma situação difícil; então ela e o filho foram adotados por toda a família. O pai biológico o registrou anos mais tarde, mas ele tem em Dona Delcina e Seu Lourenço seus verdadeiros pais.

Trabalhador, sempre exerceu o ofício de pedreiro. Depois de um tempo, conseguiu enfim construir seu próprio bar e sua residência em cima, com dois cômodos. A filha, quando começou a trabalhar, ajudou a aumentar o lar e viraram quatro cômodos. Depois, Elenilde casou, mudou e sempre insistia para que o pai terminasse de ajeitar seu cantinho, mas ele respondia com uma frase muito característica sua: "quando eu morrer não vou levar bolo de barro pra debaixo da terra."

Elenilde diz que Seu Lourenço era muito simples e o bar também tinha o mesmo estilo, mas viu a felicidade nos olhos do pai quando começou a trabalhar com o comércio. Não era um homem de ambições, costumava dizer que lhe bastava um teto pra abrigar a cabeça e não fazia nenhuma questão de qualquer tipo de luxo.

"Seu Louro" ou "Véio Louro" era muito conhecido no local e o seu bar era uma referência até pra quem vinha do Piauí. Conta Elenilde que, além dos vizinhos, que eram a maioria da clientela, os amigos piauienses, visitantes ou vindos também em busca de nova vida, tinham o "Bar do Lourenço" como parada obrigatória. E entrega: "Meu pai sempre recebia todos muito bem e ajudava como podia. O bar é bem simples, mas acolhedor e, como meus pais moravam em cima, ele sempre dizia que era 'lugar de respeito'. Se por acaso alguém começasse uma bagunça, logo ele colocava pra fora."

Um grande prazer de Seu Louro era ver as pessoas bem alimentadas. Se Dona Delcina por acaso não preparasse a comida, não tinha tempo ruim; lá ia ele para a cozinha e fazia, do seu jeito. Saía cuscuz, sarapatel, joelho de porco... Ele nem cobrava, era com satisfação que ajudava quando necessário. Segundo a filha, "isso é coisa de nordestino", mas admirava demais o pai por gestos como esses, afirmando ainda só ter coisas boas que façam lembrar dele.

Claro que era um ser humano e tinha defeitos. Como lembra a filha, "ele era um homem muito calmo, caseiro, conhecido e adorado por todos na região. Mas sua calmaria, quando era abalada por alguma coisa, mudava de 'quase não abrir a boca', para uma explosão". Fora a teimosia. Quando falava não, ninguém o fazia mudar de ideia. Mas, sem dúvida, as qualidades superavam qualquer defeito. A bondade então, estava enraizada em seu coração humilde. Como lembra Elenilde, durante a internação do pai, ela foi parada na rua várias vezes, por desconhecidos, que vinham comentar, gratos pela ajuda recebida de Seu Louro: um sapato, 1kg de carne... Ele não acumulava nada e o pouco que possuía, dividia, pois repetia sempre que não levaria nada dessa Terra.

Lourenço deixa ainda cinco irmãos vivos, com os quais tinha ótimo relacionamento. Era uma pessoa muito tranquila e dificilmente alguém não gostava desse sujeito, lembrado em qualquer tempo ainda em sua cidade. A filha menciona que, quando ia passear no Piauí, as pessoas sempre comentavam da saudade do "Bar do Lourenço". Agora as viagens até lá serão mais tristes pelas lembranças e as perguntas... as saudades serão do "Louro".

A família é muito grata pelo legado deixado, pois, mesmo com sua partida, o patriarca segue ajudando: o filho Edilson estava desempregado e agora tomou a frente do Bar, botando até uma placa com o nome para homenageá-lo. Ele ficará muito feliz, pois sua maior benção era a família e, em especial, os seis netos. Ele adorava crianças, mas os netos eram seu tesouro. As duas meninas, filhas de Elenilde, cresceram com os avós, que ficavam com elas enquanto a mãe trabalhava fora. Laís, a mais velha, era o xodó do avô. E era nítido atravessar seu olhar e traduzir a felicidade plena e um amor puro, ao som de um "te amo, vô" ou num abraço ao chegar correndo da escola direto para os braços dele.

"Meu pai era caladão, não gostava de muita conversa e não visitava a gente. Mas perguntava: 'pra que eu iria?' Já que estávamos todo dia na casa dele. E era verdade. Eu, por exemplo, saía do trabalho e passava para buscar minhas filhas. O pouco que ele falava, gostava de conversar comigo, pois éramos mais próximos. Sempre que podia, esperava ele fechar o bar e subir pra trocar umas palavrinhas", lembra com carinho Elenilde, que garante ter sido presenteada por Deus com o melhor pai nesta vida.

Seu Lourenço e Dona Delcina fizeram ao longo da caminhada juntos muitos amigos e com isso, muitos filhos lhe foram dados em batismo. A filha diz que era um tal de ver passar "benção, padrinho", que o pai nem dava conta de decorar os nomes. Mas Weslley, que se tornou filho, esse mora hoje com a mãe biológica, mas diariamente visitava os pais de coração. Após a partida do pai, sofreu junto com os irmãos e continua indo à casa de dona Delcina todos os dias.

"O que fica do meu pai? Lembro-me muito dele sentado num banquinho, calado, olhando pro nada ou conversando com os clientes... de bermuda, camisa de botão e chinelo... e sua marca registrada: um boné. Ele não ficava sem boné; tinha uma coleção e os amigos presenteavam-no com vários modelos diferentes. Ele foi o homem mais simples e correto que conheci. Não me deu luxo, casa ou carro, nem mesmo pagou meus estudos. Não ligava pra isso, mas me passou tanta coisa boa com sua aparência séria que às vezes podia parecer mau, mas, na realidade, por trás tinha um coração generoso e amoroso. Ainda dói pensar que ele passou dois meses internado. Agora descansou e foi embora feliz após ver a foto dos netos", despede-se com emoção Elenilde.

Lourenço nasceu em Oeiras (PI) e faleceu em São Bernardo do Campo (SP), aos 67 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Lourenço, Elenilde de Sousa Costa Martins. Este tributo foi apurado por Beatriz Maia, editado por Denise Pereira, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 24 de janeiro de 2021.