1965 - 2020
Acolheu a família, toda gente e todo bicho que precisou, mesmo sem saber, do seu amor, sorriso e cuidado.
Na infância, Lúcia morou em um sítio em uma cidadezinha no interior do Rio Grande do Norte. Ela morava com seu pai, que era barbeiro, a mãe e mais três irmãos, todos homens. Teve uma irmã mais nova, que infelizmente, faleceu muito pequena.
Lúcia e a família levaram uma vida bem simples, que melhorou depois que o irmão mais velho, Gerson, começou a trabalhar. Da vida interiorana no Nordeste e do convívio com os avós, herdou muitas superstições: não comer banana a noite, não misturar leite com manga, não cortar o cabelo menstruada e muitas outras. "Ela tinha o espírito do Nordeste profundo dentro dela", acredita a filha Luane.
O primeiro trabalho foi como caixa em uma loja. Depois passou a trabalhar na área do Serviço Social. Ela começou no SOS Criança, ajudando crianças em situação de rua, abandonadas, ou que viviam em orfanatos. "Acho muito bonita a dedicação dela a essas questões sociais desde muito nova", a filha se orgulha.
Nessa época, Lúcia era muito elegante, usava mullet como corte de cabelo e vestia-se muito bem. "Lembro que quando eu escutava Beatles, ela dizia que gostava de ir para as festas que tocavam essas músicas quando era nova. Tenho algumas fotos de roupas que ela usava, muito estilosa e linda. Lembro também dela contar que quando criança, chegou a cortar o cabelo sozinha. Acabou tendo que deixar ele bem curtinho, o que pra época era incomum para uma menina. Ela se destacava", conta Luane.
Lúcia concluiu o ensino médio e o magistério. Na adolescência, conheceu César, aos 15 anos. Mas eles se separaram, e se reencontraram anos depois. Antes do reencontro, Lúcia engravidou, aos 19 anos, mas, infelizmente, sofreu um aborto espontâneo. Ela tinha diversos problemas nos ovários, o que a entristecia, pois seu sonho era ser mãe.
Com César em sua vida novamente, Lúcia passou a fazer tratamentos para conseguir engravidar novamente, de forma segura para ela e para o bebê. Foram dez anos de tentativas, e os dois filhos vieram, saudáveis, com menos de um ano de diferença: Luane primeiro e José Sobrinho em seguida.
Na reta final da gravidez de Luane, Lúcia perdeu o irmão mais novo, de quem era tão próxima. A situação gerou riscos a gravidez, mas a filha foi forte e veio ao mundo para trazer alegria a família.
A experiência com o Serviço Social foi aumentando e Lúcia passou a trabalhar com adolescentes infratores, o que deixou a rotina mais exaustiva, com os plantões de 12 horas. Apesar dos desafios da profissão, Lúcia tinha amor pelo que fazia e, por isso, todos gostavam muito dela. "Ela era uma educadora para aqueles meninos, às vezes encontrávamos alguns deles na rua, e tratavam ela com muito respeito e admiração", conta Luane. O seu papel era ajudar a ressocializar aqueles meninos, e o seu jeito acolhedor de ser a ajudava muito nessa tarefa. Por isso, muitos dos adolescentes a tinham como uma de suas educadoras preferidas, e até se entristeciam nos dias de folga de Lúcia.
Depois das duras perdas do pai e do irmão, ambos de formas trágicas em acidentes, ela perdeu também a mãe para o câncer no início dos anos dois mil. Seus filhos ainda eram muito pequenos. Lúcia entrou numa depressão profunda com a perda da mãe, pois lutou incansavelmente pela sua recuperação, com dois filhos pequenos para cuidar e o trabalho desafiador. Era uma pessoa extremamente apegada a família e a sua mãe, Dona Otacília Fernandes, e foi com a ajuda dos filhos que Lúcia conseguiu se recuperar e ser resiliente, mais uma vez.
Lúcia foi o alicerce da família, o porto seguro dos filhos; uma mãezona. Perdeu o companheiro quando as crianças tinham 12 e 13 anos de idade. Quando a filha entrou na faculdade ela a acompanhava quase todos os dias até parada de ônibus, mesmo Luane dizendo não ser necessário, mas ela gostava desse ritual de proteção. "Ela era a minha melhor amiga, sempre tivemos uma relação muito aberta e transparente. Sempre contava quase tudo da minha vida a ela, sempre tivemos uma relação muito forte, de afeto, confiança."
Para garantir educação de qualidade dos dois, trabalhou dobrado, fez empréstimos e todo o possível para honrar as mensalidades. Deu certo, ambos se formaram. "Ela dedicou tanto esforço aos nossos estudos que eu me formei e fui reconhecida como a melhor aluna pela Láurea Acadêmica. Sem ela e todo o seu apoio eu jamais teria conquistado isso." relembra Luane.
Sempre forte e corajosa, enfrentou muitas dificuldades e tinha um jeito pra tudo. As perdas precoces deixaram marcas em sua vida, é verdade, mas elas nunca conseguiram tirar o sorriso de seu rosto e a alegria do seu coração.
Seu lugar preferido de dormir era na rede, "a mulher só sabia dormir de rede" diz a filha que brigava por causa desse costume, pois a mãe já havia levado algumas quedas da rede; a filha dizia que ia jogar a rede fora ou "rebolar no mato" como as pessoas da cidade costumam falar, mas Lúcia não deixava. Aquele era um costume ancestral, herdado de seus pais, e, muito provavelmente, uma herança indígena. Seus cabelos negros e traços acusavam isso desde muito cedo.
Devido a profissão de risco, se aposentou aos 54 anos de idade, em 2019. Dois anos antes começou a tratar uma doença renal crônica, hereditária na família ascendente e descendente. Fazia os tratamentos de hemodiálise três vezes por semana e aguardava entrar na fila para um transplante de rim. O tratamento, infelizmente, era muito agressivo e a fragilizava.
Quem a via nem imaginava que Lúcia passava por tanto, pois estava sempre de cabeça erguida e com um sorriso no rosto. Era muito engraçada e perspicaz, com piadas boas e diversas, fazia todos rirem ao seu redor. Era cheia de vida e amada por todos que a conheciam.
Nas confraternizações do trabalho, ela era a alegria da festa. E todos se entristeciam quando ela não podia comparecer. Sempre brincava, dança e animava todos a sua volta.
Em seu último ano se divertiu no São João em um show do Alceu Valença e curtiu feliz o seu último carnaval, e ao lado dos amigos brincou e se divertiu indo à praias.
A alegria de Lúcia em seus períodos difíceis era a netinha Ravena. Que alegria foi fazer uma festa linda e colorida para a neta, pelo seus dois aninhos de vida. Pode compartilhar também de um momento inesquecível para a família, quando todos levaram Raveninha para conhecer o mar na praia de Pernambuquinho, em Grossos (RN). Foi uma viagem incrível onde as duas ficaram grudadas o tempo todo; aliás Ravena amava ficar no colo da vovó sempre que podia, e ela amava a neta, dizia sempre que ela era sua alegria de viver.
Quando Ravena visitou Pernambuquinho outra vez, após a partida da avó, seu primeiro instinto foi perguntar por ela. "Vovó, vovó" dizia a pequena. Mesmo muito nova, as lembranças boas ao mar junto aos cuidados da avó ficaram marcadas na menininha de apenas dois anos.
Até os gatinhos de rua tinham um pouco do amor e cuidado de Lúcia, que em seu último dia das mães, foi vista colocando ração para os gatinhos se alimentarem.
Uma pessoa realmente fantástica, única, inesquecível, de coração gigante e acolhedor. Seus 55 anos foram marcados pela garra de uma mulher sorridente, que se reinventava a cada novo percalço da vida, todos continuam a amá-la.
Os filhos vivenciaram com ela uma relação aberta e transparente, de afeto e confiança; tiveram o privilégio de ter uma mãe também melhor amiga e conselheira, Lúcia mesmo sendo de outra geração, era muito compreensiva e sempre tentava entender os filhos e seus amigos. A sua proteção, cuidado e amor incondicional para seus filhos e netos deixou saudades eternas em seus corações, e todos anseiam pelo dia em que poderão reencontrá-la.
Lúcia está no céu, acompanhada dos familiares que partiram antes e que se amavam mutuamente.
Lúcia nasceu em Upanema (RN) e faleceu em Mossoró (RN), aos 55 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela filha de Lúcia, Luane Fernandes costa. Este tributo foi apurado por Thaíssa Parente, editado por Karina Zeferino, revisado por Luana Bernardes Maciel e moderado por Rayane Urani em 23 de junho de 2021.