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Lucyana Conceição Ramos

1995 - 2020

Foi um anjo que veio iluminar a vida de todos que a conheceram, mesmo que por pouco tempo.

“Você é minha negra linda, minha pérola negra!” eram palavras que Lucyana costumava ouvir da sua mãe, Jussara. Ela e a mãe eram inseparáveis, companheiras para todos os momentos. Tinham uma relação para além dos laços maternos, construíram um vínculo de amizade. Sem Lucyana aqui, Jussara não perdeu só a filha, mas a melhor amiga. “Ela era tudo pra mim [...] não dava um passo se não fosse comigo. A gente fazia de tudo juntas: festa, passeio...”, lembra a mãe.

Lucyana nasceu e cresceu no Conjunto Eduardo Gomes, no município sergipano de São Cristóvão, morou lá a vida toda com a mãe e o irmão Luiz Davidson, de 19 anos. E foi nessa mesma cidade que realizou um de seus maiores sonhos: entrar na Universidade Federal de Sergipe (UFS), quando foi aprovada, em 2019, no curso de Secretariado Executivo. “Eu achei que naquele momento eu tinha ganhado na loteria”, conta a mãe. Lu, como era chamada carinhosamente, não pôde completar o ensino superior, Jussara não viu a filha se formar. Foi apenas um dos tantos planos interrompidos, já que estava noiva e planejava o casamento.

Ela e Diego, seu noivo, iriam completar três anos juntos. A data do aniversário de namoro foi marcada pela cruel imprevisibilidade da vida e agora não lembra apenas o início de todos esses sonhos do casal. Foi um fim ao apartamento que os dois estavam para receber, à decoração que ela sonhava fazer no futuro lar. Lar que seria deles e um pouquinho de Jussara, claro. A filha nem cogitava ficar longe da mãe, e dizia: “Olha, mãe, eu vou casar, mas a senhora vai junto!” A jovem de 24 anos também sonhava em ter um espaço específico para produzir e vender os salgados, doces, bolos de pote e geladinhos que fazia e expandir o seu negócio próprio.

“Meu salgadinho tá dando certo! Eu tô pensando em abrir um lugar, você sai do seu emprego e vem trabalhar comigo”, disse ela à mãe, a pessoa que a incentivou a começar com esse trabalho logo após uma demissão que havia afetado muito Lucyana: “Tome aqui o dinheiro pra fazer o que você quiser fazer”. E ela fez. Começou devagar e, depois, já havia conquistado bastantes clientes. Muitos deles perguntaram por ela, sem saber a razão do sumiço, e lamentaram ao saber o que havia acontecido. O jeito meigo, doce e dedicado foi o que os havia conquistado, era o que conquistava qualquer pessoa que a conhecesse. Sua alegria contagiava cada um que passava por sua vida.

Tanta força e graciosidade para encarar a vida escondia um pouco da rotina puxada e cansativa. Depois de passar quase o dia inteiro na universidade, sentada à mesa da cozinha com um chapeuzinho vermelho na cabeça, Lu virava a noite fazendo as encomendas. Por isso, chamavam-na de “touquinha de saci”. O apelido perdeu o sentido quando a mãe comprou a touca adequada. Com a proteção correta ou com a improvisada, passava as madrugadas preparando gostosuras. Jussara acordava para ir trabalhar e ela ali estava. “Minha filha, você não vai parar não?”, perguntava a mãe preocupada.

A preocupação acerca de Lucyana limitava-se a esses momentos. Nos demais, a filha era apenas motivo de orgulho para Jussara. As duas eram confidentes. Era a filha quem lembrava das senhas do cartão da mãe. Era ela quem saía e resolvia todos os problemas, tomava a frente de tudo. Com o dinheiro que ganhava vendendo os salgadinhos, ajudava nas despesas da casa. A situação não era fácil, mas, mesmo no aperto, mantinha o riso e o bom humor. Era muito dedicada, decidiu que iria prestar o Enem mesmo com a falta de recursos financeiros e com as dificuldades. “Mãe, não sei nem como estudar, não tenho computador, só tenho celular”, desabafou à Jussara. Mais uma vez, a mãe a incentivou, respondendo à filha: “Você vai passar, você vai entrar na UFS, pois esse ano é seu”. Palavras que realmente se fizeram verdade.

Lucyana deixou muitas amizades. Desde a infância, colecionou amigos e pessoas queridas. Com as amigas do trabalho antigo, costumava se reunir. Fazia confraternizações sempre que possível, amigos secretos. Na escola, participava das atividades extracurriculares. Era a rainha do milho, da pipoca, nas festas juninas. Amava dançar, se divertir, mesmo que na sua própria companhia. Já na quarentena, se produzia para tirar fotos, ficava posando na frente do espelho. Era muito vaidosa. Estava sempre com argolas grandes nas orelhas, sua marca registrada. Quando ia ao centro comercial de Aracaju, Jussara via os brincos que a filha tanto gostava e pensava: “Vou levar isso aqui pra minha Lu!”

Estava sempre com um cabelo diferente: foi azul, castanho, alisado, cacheado, trançado. As tranças, ela mesma aprendeu a fazer. Aprendeu várias coisas assim, sozinha, assistindo aos tutoriais de uma plataforma de compartilhamento de vídeos. Todos os estilos de cabelo que teve foram feitos por ela, nunca no salão. Ia nas lojas comprar os adereços necessários, chegava em casa e dizia em voz alta: “Não sei se boto cabelo ou se boto trança”. Passava horas no quarto se transformando. O resultado era tão bom, que passou a fazer em outras pessoas, as primas foram as primeiras cobaias até conseguir suas primeiras clientes.

As tantas argolas que possuía ainda estão nas gavetas do seu quarto, assim como as roupas continuam no armário. A mãe limpa todo dia o cantinho dela junto ao restante da casa. A cachorrinha criada por Lu desde filhote, batizada de "Luna Brito Brandão", transita pelo lugar sem saber o que aconteceu com a dona. As coisas parecem estar do mesmo jeito, mas não estão. Não tem tudo, porque não tem Lucyana, que para Jussara era a definição da palavra. Sem "Lu", o tempo parece não passar. Nem a dor ou a saudade. “A gente só se acostuma”, desabafa a mãe.

Jussara se agarra ao pensamento de que a filha deixou um legado por todo lugar que passou. E foi um legado bonito!

Lucyana nasceu em Aracaju (SE) e faleceu em Aracaju (SE), aos 24 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela mãe de Lucyana, Maria Jussara Conceição Santos. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Gabriela Luise Santos Rosa, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 20 de novembro de 2020.