Sobre o Inumeráveis

Luzimar Francisca de Carvalho Silva

1969 - 2021

Ensinou que uma pessoa é vitoriosa quando consegue traçar pequenas metas e cumpri-las.

Daniel, o filho caçula de Luzimar, honra sua memória com uma linda carta aberta falando de suas origens, lutas, conquistas e glórias. Uma carta recheada de carinho e gratidão que ele faz questão de compartilhar como um patrimônio e um legado a ser conhecido e respeitado:

“Dear Mom,

Uma vez um professor de estatística da faculdade fez uma pergunta para alguns alunos da sala, a fim de provar a existência de uma certa correlação e padrão entre as respostas. A pergunta era a seguinte: 'Por que você cursa Relações Internacionais'? Alguns satirizaram dizendo que era para ser rico, já outros disseram que a faculdade possibilitaria um leque de opções de trabalho no mercado. E teve uma resposta que me intrigou: um aluno disse que era 'para dar orgulho aos meus pais'. Primeiro eu achei nobre a resposta, depois sorri, porque eu compartilhava do mesmo sentimento.

Dona Lu... vou compartilhar aqui um pouco da nossa vida pessoal, para que todos entendam um pouco da sua caminhada e o legado que a senhora deixa para seu marido, três filhos e um 'doguinho'. A senhora sempre partilhou abertamente com quem tivesse interesse, então vamos ampliar esse testamento não patrimonial? Fazendo isso, eu também abdico de minha privacidade familiar, quebrando um dos selos que sempre reverenciei como pessoa.

Francisca de Carvalho, minha avó, adotou doze crianças em sua trajetória aqui na terra. Entre elas, estava a minha mãe, Luzimar Francisca de Carvalho. Foi pega ainda quando criancinha, doada pela própria mãe biológica, e teve uma vida boa nessa nova realidade, com um pai adotivo que possuía cabeças de gado e alguns terrenos pela região do Piauí. Além disso, sua mãe adotiva sempre foi muito presente. Costumam dizer que minha vó viveu até os 96 anos por ter um espírito muito cortês, por ser amorosa e bondosa 'demais' com as pessoas.

Minha mãe nunca se sentiu desprezada ou rejeitada por ser adotada, pelo contrário: sentia-se amada e aceita pela minha avó porque a Dona Chiquita a preenchia de tanto amor, que transbordava. Tudo o que a minha mãe sempre teve a oferecer foi amor. Com 21 anos resolveu aventurar-se pela selva de pedra, isto é, seguir para São Paulo, arrumar um emprego e ter sua independência financeira na década de 1990. No início ficou na casa de alguns primos, que já moravam na cidade, e foi nesse contexto que conheceu meu pai, Laurêncio.

Engraçado que eles moravam numa mesma pequena cidade do Piauí, mas só se conheceram em São Paulo. A minha mãe 'gamou', quero dizer, apaixonou-se pelo 'marrento da XRX', vulgo meu pai. Tiveram três filhos, Brysy, Luan e eu Daniel, que fui o último, também conhecido como caçula. Já nasci trazendo infortúnios para meus pais, pois no dia em que minha mãe me trouxe ao mundo o fusca do meu pai foi roubado no estacionamento da maternidade. Assim, ganharam um filho e perderam um carro.

O sofrimento terreno de minha mãe estava engrenado para começar a partir deste dia, em sua recuperação do pós-operatório da cesárea, quando acabou contraindo um vírus no hospital com nome e sobrenome: Hepatite C. Eu não tenho muitas recordações desse período, tinha meses de vida. Minha mãe fez tratamento até os meus 3 anos. Mesmo com a gravidade da doença, ela se apegou e focalizou sua vontade de viver nos três filhos pequenos. Foi nesse mesmo momento que ela começou a fortalecer sua fé e sua vida espiritual com Deus, convertendo-se ao Evangelho.

A Hepatite C foi curada e ela conseguiu um emprego na mesma empresa em que meu pai trabalhava. Juntos, construíram a nossa casa, comparam carro e seguraram as broncas financeiras, com muitas dificuldades, mas nunca faltou amor e sermão de compreensão para os filhos. Meus pais sempre tiveram garra, vontade e honestidade em tudo que fizeram.

Esse lance de razão (pai) e emoção (mãe) era muito vivo aqui. Minha mãe era imensa em transpor amor, ela realmente trasbordava em tudo que fazia, era extraordinariamente forte, lutava como uma leoa. E não só isso. Suas maiores qualidades estavam em seu interior: bondade, generosidade e cumplicidade estavam acima de tudo. Eu via algumas pessoas pisando, abusando da boa vontade da minha mãe e ela simplesmente fingia não ver, omitia e seguia ajudando-as. Eu ficava de 'cara', ficava bravo e falava para ela acordar para a vida real, mas percebi que aquilo era introspectivo, vinha de dentro, era intangível a mudança.

Minha mãe não era só uma pessoa de boas intenções e de boas atitudes. Ela era incrível! Não me ensinou muitas coisas na teoria, mas aprendi vendo-a fazê-las Era tipo mãe-espelho e filho-reflexo. Nos ensinou a correr atrás de nossos objetivos e sempre dizia para sermos fortes, para sermos verdadeiros com os outros e não ludibriarmos as pessoas de forma alguma. Muito do que tinha nela eu vejo na gente. A sua garra, determinação e coragem. Ô mulherzinha de coragem! E o seu amor... Ah, o seu amor...

Sempre pregou o perdão e nos incentivava a libertá-lo, independentemente do que a outra pessoa nos houvesse feito e essa parte estou trabalhando em mim ainda... Pedir desculpas e agradecer fazia parte de quase a totalidade do seu vocabulário.

Seu método para caracterizar um 'vencedor' era fantástico. Às vezes eu falava: 'Mãe acho que não vou conseguir fazer aquela prova da faculdade', ao que ela respondia: 'Tenha forças menino, você já venceu'. Depois, quando via que eu havia conseguido, falava: 'Eu disse, você venceu'.

As vitórias para ela eram caracterizadas como 'pequenas vitorias', isto é, pequenas conquistas — como terminar de ler um capítulo de um livro ou ir para a academia. Quando você conseguia realizá-las, você vencia. Vou ensinar isso aos meus filhos.

Foi sempre forte, guerreira e não fugia de batalha: descobriu um câncer na mama no começo de 2021 e começou a fazer quimioterapia. Depois daquele dia, a senhora ficou muito diferente, mas não queria demonstrar; tinha tanto medo de perder seu precioso cabelo. A gente sentia que algo tinha mudado no seu olhar, mas a senhora insistia que estava tudo bem e dava aquele sorriso de olhos puxados. Meu Deus, aquilo acabava comigo.

Mas o fogo nos seus olhos continuava brilhando, era o fogo pelo desejo de viver. As sessões de quimioterapia não seriam nada para a senhora, ia enfrentar de cabeça erguida mesmo que o cabelo caísse; isto significa dignidade. Porém, nesse meio tempo, a sua imunidade já estava baixa, por conta da primeira sessão de quimio, e foi então que a Covid-19 achou terreno fértil no seu corpo. E durante vinte e três longos dias seus olhos ardiam pela vontade de continuar viva enquanto aguardávamos ansiosamente pelos telefonemas com notícias suas.

Talvez, se Deus a tivesse a poupado da Covid-19 sofreríamos muito mais com as suas sessões de quimio e me conforta muito ver que a senhora faleceu sorrindo. Ali, toda a sua vida regada a sofrimento e dor tinha acabado, o seu amor transbordou sobre a sua dor e foi recolhida pelo Espírito Santo.

Foi meu primeiro aniversário sem a senhora, que sempre organizava tudo e reunia toda a família para cantar parabéns. Foi duro!!! Começamos a nos apegar a qualquer sinal de esperança para dizer que a senhora não iria virar estatística de morte pela doença.

Dói muito, é uma dor que rasga meu peito e se derrama pelos meus olhos. No entanto, Deus lhe permitiu uma despedida rodeado de pessoas que te amavam. Foi o velório de uma verdadeira rainha. Eu vi pessoas encerrando o expediente do seu negócio para ir ao seu velório; eu vi pessoas pedindo para sair mais cedo do trabalho para conseguir chegar a tempo; eu vi pessoas dando carona para outras pessoas para poderem lhe dar um último adeus; eu vi pessoas transbordando no seu amor e então compreendi que é a maior herança da nossa família: a vó passou para a senhora, a senhora passou para nós e continuaremos passando essa herança do amor a toda a nossa geração de descendentes, trasbordando cada vez mais, impactando mais pessoas. Essa é a nossa maior fortuna.

A porta do meu quarto ficará sempre aberta esperando o seu 'boa noite, moço' trazendo um chazinho na xicara para eu tomar antes de dormir, como era o seu costume todas as noites. Eu te vejo em tudo mãe: nos abraços, nos apertos de mão, nos sorrisos ou nos pedidos de desculpa ao esbarrar em alguém. A senhora era tão gentil, dócil e amável. Sempre me apoiava em tudo, me dava forças, orava por mim e me enchia de amor. Obrigado Dona Luzimar!

Eu te vejo em tudo, te amo demais! Você me mostrou muito, eu sinto o seu amor me inundando, sinto que uma hora ele vai cobrir essa dor do meu peito e transformá-la em saudade. Descanse na eternidade. Seu legado e ensinamentos continuarão a ser difundidos por onde passarmos, com o seu amor incondicional por sua família e amigos.

Vou sentir falta de compartilhar fotos das minhas viagens pelo aplicativo com a senhora.

Te amamos muitão, Dona Lu!!!

Voltando à pergunta do professor de estatística e à resposta do aluno: meu maior objetivo desse ano era que a senhora visse a minha formatura. Faltava tão pouco, só seis meses. Quem tanto me ajudou nesse percurso, roeu os ossos comigo durante os quatro anos, não vai ter direito de comer o filé mignon? A minha primeira realização foi não tirar um tostão do bolso de vocês com pagamento de mensalidades de faculdade, sendo bolsista integral na FECAP. A última era ver a sua carinha, mãezinha, fosse presencial, no auditório ou atrás de mim, pela tela, na cerimônia de colação de grau.

Luzimar nasceu em Isaías Coelho (PI) e faleceu em São Paulo (SP), aos 51 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo filho de Luzimar, Daniel Carvalho da Silva. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 21 de novembro de 2022.