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Marcelo Mendes Duarte

1972 - 2020

Era transbordamento de afeto e alegria; o trabalho era arte; a família, a alma e a vida eram lições de superação.

Todas as histórias que compõem esta linda homenagem fazem parte das carinhosas e vivas lembranças que Kaique, de apenas 14 anos, tem do melhor pai que poderia ter tido na vida:

Nascido na “Terra do Gesso”, numa das cidades do polo gesseiro pernambucano e em pleno Chapadão do Araripe, Marcelo jamais fez "corpo mole" para nenhum desafio, sempre se esforçou e batalhou muito para conquistar tudo que teve e para dar o melhor para a família. Era proprietário de uma loja de gesso na capital paulista e amava o que fazia.

Por conta da profissão, foi apelidado de "Rei do Gesso", mas para a família poderia ser chamado de "Rei dos Abraços", “Rei do Afeto” ou por qualquer outro apelido grandioso em carinho e dedicação. Afinal, a relação com os filhos Kaique e Bianca, frutos da união de muito amor, respeito e companheirismo com a esposa Vitória era além de especial.

O fato de ter sido abandonado pelo pai ainda criança não fez com que Marcelo guardasse mágoas ou ressentimentos. Já adulto, ele pôde dar o apoio fundamental em relação ao vício do pai com a bebida e superou a falta de relacionamento paterno com maestria: foi o melhor pai e marido do mundo. Tanto que sua maior alegria era estar com a família e fazer tudo por ela.

“Às vezes assistíamos filmes quando não estávamos fazendo nada no final de semana e eu ficava o dia inteiro deitado, abraçado com ele. Passavam-se os anos e ele falava: ‘Kaique, para com isso, já está ficando velho para essas coisas’, mas eu não aguentava, eu era muito carinhoso com ele, assim como ele sempre foi comigo”, conta Kaique com um sorriso perceptível em cada palavra e já engatando outra lembrança: “Os domingos eram sempre alegres e maravilhosos, ficávamos juntos assistindo ao Domingão do Faustão e dávamos muitas risadas, havia muita felicidade envolvida, um sentimento sem igual.”

Para Kaique, a imagem que fica de Marcelo é a de um homem muito jovem que não tinha medo de nada; só não gostava de falar sobre morte, esse era um assunto que lhe causava um certo temor, e ele sempre procurava evitar. “Talvez essa fosse a única coisa que ele temia”, reflete o filho.

“Lembro-me que, quando chegava o final de semana, ele acordava cedo, ia comprar pão, muçarela... tudo! E quando era hora de ir para a escola e, às vezes, minha mãe ainda não estava acordada, ele levava a gente à padaria para tomarmos café juntos antes da aula”, relembra Kaique que sempre soube que o pai queria o melhor para eles. Marcelo trabalhava das 7 às 18 h e, muitas vezes, ficava até bem mais tarde para proporcionar cada vez mais conforto e segurança aos seus. Era de praxe tomar sua geladinha ao final do expediente.

Tinha paixão por carros e toda vez que ia com a família ao shopping, era sagrada uma paradinha para apreciar os que estavam em exposição. Só andava bonito e cheiroso. Era um homem vaidoso que gostava de se cuidar e de usar relógios. “Sinto tanta falta de sentir o perfume dele, o cheiro do meu pai”, revela Kaique.

Marcelo se barbeava todos os dias. Era cuidadoso com a aparência e, em tom de brincadeira, fazia ciúmes para a esposa dizendo que isso o deixava mais novo para impressionar as “gatas”. Com ternura e divertimento, o filho lembra que Marcelo tinha uma barriguinha de chope e que por várias ocasiões, principalmente nos momentos que antecediam o fechamento da loja, pôde reparar (achando graça) que ele tinha o costume de passar a mão na barriga, assim como fazem as grávidas.

“Uma vez meu pai comprou uma daquelas mesas de futebol de botão, sabe? A gente jogava imitando os jogadores, como se fosse um jogo real e ele fazia gol em mim eu fazia nele. Ríamos demais... E certa vez ele foi a um bar perto de casa para tomar uma cerveja e uma abelha pousou na latinha sem que ele percebesse e, quando ele foi beber, a abelha deu-lhe uma picada. Chegou em casa com o beiço enorme de tão inchado! Num primeiro momento não entendi o que havia acontecido”, conta Kaique que diz ter caído na gargalhada junto com o pai quando este lhe contou a história toda.

Kaique revela que a relação do pai com a família e o trabalho era de muito afeto e amor, “não tinha essa de ele não ter tempo, para a gente ele arrumava tempo. Minha mãe trabalhou com ele praticamente toda a vida; então, o trabalho e a família estavam permanentemente muito próximos. Quando nos mudamos para mais perto da loja não teve meio-termo: nos víamos sempre, o dia todo. O maior dengo dele era a caçula, Bianca, de 6 anos. Ele a amava com todas as forças possíveis. Ele gostava quando eu ia para a loja também, ficava todo orgulhoso quando eu ia ajudar. Ele simplesmente amava trabalhar e fazia aquilo pela família. Era tudo pensando na gente, sempre! Queria melhorar de vida para nos dar condições cada vez melhores – coisas que ele mesmo não teve.”

Mas quando Kaique dizia ao pai que seria jogador de futebol para poder ajudar a família a alcançar essas melhores condições, o pai retrucava dando risada: “E você acha mesmo que se você virar jogador eu vou abandonar o gesso?”

Dentre os sonhos de Marcelo, certamente estavam: viver bem e muito mais, ver os filhos crescerem, se formarem, serem boas pessoas e comprar um apartamento. Não queria ficar rico ou milionário, “isso era o de menos”, afirma Kaique. “Ele queria mesmo era estar com a família por mais tempo, ter seus netos... Uma coisa que nunca vou me esquecer na minha vida e que ele falava constantemente é que seu maior sonho era poder comprar uma carreta de gesso. Nossa, como sinto falta... Ele sempre falava dessa carreta.”

A maior alegria dele era quando a esposa chegava na loja com Bianca e Kaique arrumados e perfumados, ele fazia questão de apresentá-los e dizer com orgulho: "Esses são os meus filhos!" Era muita alegria e carinho quando ele via os filhos sendo bem cuidados.

Guerreiro e muito trabalhador, em sua trajetória e atitudes Marcelo conseguiu, apesar da pouca idade, demonstrar aos seus que é possível reverter e ressignificar situações difíceis e tornar muito melhor a vida de quem se ama. O valoroso e carinhoso legado que deixou para a família representa que nada foi em vão e que sua história continua através de Bianca, Kaique e Vitória.



Tributo enviado por Kaique Costa Duarte, menor (14 anos), com autorização da mãe Maria da Vitória Costa Duarte, que acompanhou todo processo de entrevista e colaborou com as informações durante nossas conversas, via aplicativo de mensagens, com Kaique.



"Os amores de Marcelo eram os filhos Kaique e Bianca. Ele trocava qualquer coisa para ficar com os dois em casa. Não tinha festa nem ninguém que o fizesse deixar os filhos sozinho. Ele foi um pai excelente, impecável e perfeito", complementou Vitória no momento de sua autorização para a publicação deste tributo.

Marcelo nasceu em Araripina (PE) e faleceu em São Paulo (SP), aos 47 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de Marcelo, Kaique Costa Duarte. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 13 de março de 2021.