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Maria Albuquerque de Oliveira

1941 - 2021

O ponto alto das festas da família era quando ela servia a canja de galinha que preparava com o maior capricho.

Ela era uma das filhas mais novas quando a mãe faleceu. O pai viajava muito a trabalho deixando Maria e os outros irmãos menores aos cuidados das três irmãs mais velhas. Quando cresceu um pouco, também passou a auxiliá-las nos cuidados dos mais novos.

Enamorou-se por Chico Meruoca — um homem preto e analfabeto, que trabalhava na roça. Eles se casaram e durante todo o matrimônio ela foi uma esposa apaixonada, que sempre honrou o marido. Foi o alicerce do casamento durante os percalços e, mesmo diante do seu vício com a bebida, nunca o abandonou, cuidando dele com todo amor e carinho — além de nunca deixar de aconselhá-lo.

Maria engravidou logo após se casar, entre 1961 e 1962, e teve onze filhos: Antônio Rogério, Maria Rosângela, Jose Ivan, Francisco Erivan, Francisco Gilvan, Antônio Edson, Maria Rosilane, além de Rozileidna, Rosilane, Antonio Carlos, Carlos Augusto. Estes quatro últimos faleceram ainda pequenos. Foi sempre uma mãe muito carinhosa e dedicada, e que não poupava broncas se fosse necessário. Gostava de costurar para os filhos, cortava os cabelos deles e juntos faziam artesanatos para vender.

“Minha avó Maria estava sempre alegre e nos dava muitos conselhos”, conta a neta Rozileidina. “Meu pai, Antônio Rogério, se recorda de quando ela cozinhava milho para vender durante a novena de São Francisco, na companhia dos filhos. Ela era extremamente carinhosa, mas, se necessário, não hesitava em nos dar broncas, principalmente, quando os netos faziam algazarra ou brigavam entre si”.

Além desta neta, Maria também era avó de Lucélia, Gisele, Ítalo Augusto, Talita, Lucas, Lara, Isabela, Vanessa, Maria Clara e Sofia. E bisavó de Pedro Paulo, Carolina, Miguel, Samuel, Maria Eduarda, Murilo e Maria Valentina.

No ano de 2009, o casal, que ainda vivia no Ceará, mudou-se para São Paulo, onde morava a maioria dos filhos, que precisaram se unir para cuidar e dar suporte ao pai, acamado em decorrência de um AVC e que veio a falecer em 2010.

Apaixonada por gatos, Maria criava oito que viviam com ela e com a filha mais nova: Nino, Preta, Jasmine, Lola, Filó, Fred, Joca e Francisco Ryan. Os animaizinhos eram os seus xodós, a sua grande distração. “A Pretinha, como minha avó a chamava, era apaixonada pela dona. A gata acompanhava a minha avó em qualquer lugar onde ela estivesse dentro de casa, sendo sua companhia assídua quando ia assistir a novelas no quarto. Já outro gatinho, o Joca, foi atropelado e fez cirurgia na pata. Levou muito tempo para se recuperar e sempre que estava com dor ele buscava a minha avó, que orava na patinha dele até aquele ardor passar”, conta a neta.

Durante o casamento, Maria sempre trabalhou para contribuir com as despesas do lar. Quando os filhos eram pequenos, cozinhava milho e pedia para os mais velhos venderem a iguaria na cidade. Mais tarde, decidiu aprender corte e costura. O marido, enciumado, não gostou muito da ideia, pois pensava que ela largaria dele. Para continuar no curso foi preciso que o filho Antônio Rogério a acompanhasse até o local da aprendizagem.

Muito habilidosa, Maria gostava de fazer artesanatos no Natal, sabia cortar cabelos e costurava muito bem. Durante muitos anos revendeu produtos de beleza e para casa. Qualquer ida à casa de alguém da família servia de oportunidade para vender algo. Assim, toda vez que saía, levava alguns produtos em sua bolsa na tentativa de realizar vendas.

Nas horas vagas, gostava muito ouvir rádio e de assistir TV. Quando jovem, Maria não possuía televisão em casa e quando queria assistir precisava ir até a janela dos vizinhos — um hábito comum naquela época em que as casas não tinham muros para separá-las. Em 1977, o marido comprou a primeira televisão para a família e desde então ela não perdia as suas novelas.

Vaidosa, estava sempre bem arrumada. Antes de sua conversão, mantinha-se maquiada, com o batom destacando o seu rosto, sempre perfumada. Fumava, volta e meia tentava a sorte nos jogos e fazia simpatias.

Por muito tempo foi católica. “Lembro que havia algumas imagens de santos na casa dela”, conta a neta. “Em 2002 ela começou a frequentar a Igreja Evangélica e passou a ler a Bíblia. Na maior parte do seu tempo livre ela ouvia louvores e mantinha-se em oração. Era dotada de uma fé inabalável. Quando alguém da família dizia estar com alguma dor, minha avó perguntava se podia orar para aliviar aquele incômodo. Por diversas vezes ela orou por mim”.

Em 2013 Maria começou a tratar uma catarata em um hospital público. Quando foi diagnosticada com problemas na córnea, passou a ir ao hospital quinzenalmente e mensalmente, para consultas e exames. Eram dias cansativos para ela, devido às longas filas de espera e à ansiedade, que não a deixava dormir direito com receio de perder a hora marcada.

“Um ano depois, ela realizou a cirurgia da córnea, mas continuava indo a consultas para acompanhamento. Numa destas foi diagnosticada e internada com Covid-19. A neta a acompanhava nos dias de folga e relembra: “Eu trabalhava nesse hospital e por isso consegui ir até o setor e conversar com ela. Foi a última vez que conversamos. Era um sábado e, como no domingo não tinha o boletim médico, disse para ela: 'Vó, amanhã não consigo vir, mas na segunda eu venho te ver, tá bom? Te amo!' Foi nosso adeus”.

Ela relembra ainda de outros fatos marcantes: “Na cerimônia do meu casamento, meu marido e eu pedimos para nossas avós levarem as nossas alianças. Foi um momento muito bonito e emocionante! Recordo também de quando passava férias na casa dela e ao me apresentar para alguém, sempre falava: “Essa é a Leidinha, a minha primogênita”.

“Em todos os aniversários a minha avó preparava canja. Não sei ao certo qual era o significado, mas em datas comemorativas, quando a família estava reunida, era tradição nos fartarmos com a canja da vó, sempre muito saborosa. Mesmo no verão, todos comiam".

“Minha avó revendia cosméticos, sabia bem qual era o perfume que eu gostava e me presenteou com um frasco no meu aniversário. Todas as vezes que sinto o aroma desse perfume, ela automaticamente me vem à mente”.

E Rozileidina conclui, com saudade: “Acima de tudo minha avó desejava que a família, seu bem mais precioso, estivesse feliz e unida. Depois, sonhava em ganhar na loteria para ajudar a todos os que amava. Nos ensinou a nunca perder a fé e a entender que nem sempre o que desejamos é a vontade de Deus e que Ele nunca nos desampara”.

Maria nasceu em Itapipoca (CE) e faleceu em São Paulo (SP), aos 79 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelos filhos e pela neta de Maria, Antônio Rogério de Oliveira, Maria Rosângela de Oliveira Santos, Antônio Edson Albuquerque e Rozileidina dos Santos de Oliveira Barbosa. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 24 de julho de 2023.