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Maria Aparecida Marques

1939 - 2020

Autêntica e direta, Vó Cida não era exatamente doce, mas engraçada. Fazia rir e só chorou uma vez. De alegria.

Poucas pessoas têm a chance de partir com a certeza, em vida, de que foram muito amadas. Vó Cida teve essa chance e a agarrou sem duvidar.

Mãe de três, avó de sete e bisavó de mais três, Vó Cida era dona de uma personalidade forte, tão forte, que muitas vezes a impedia de demonstrar afetos de maneira casual. Sua neta mais velha, Camila, conta: "Ela nunca foi aquela vó mais doce, de muitos beijos e muitos abraços, mas tivemos muitos momentos de risadas espontâneas, e sabemos que foram supersignificativos, pois foram únicos".

Vó Cida cuidava dos seus de outras formas. Acordar todo dia às 6h da manhã para fazer o café preto de seu filho, com quem dividia a casa, era uma dessas demonstrações espontâneas e particulares de afeto.

Ela também nunca dizia não a um bom prato de comida ou a um convite para viajar. Aliás, viajar com ela era uma experiência única! A casa de praia de seu segundo marido e avô de criação de todos os seus netos, vivia cheia deles e não possuía sequer TV para que, assim, todos pudessem socializar.

A neta Monica certa vez organizou uma viagem marcante para Vó Cida, logo após ela sofrer um AVC, em 2010. Até então, nunca tinha andado de avião. Para convencê-la da aventura, Monica disse à avó que o lugar aonde iriam, em Goiás, era ótimo porque estava repleto de termas, as piscinas naturais, e que quanto mais tempo dentro d'água a pessoa passasse, melhor era para a saúde. Não é que Vó Cida se animou? "Os cinco dias que passamos lá ela ficou o tempo todo dentro das piscinas! Tivemos que falar que exagerar nas termas também fazia mal... Foi muito engraçado", conta ela.

Essa é uma das histórias engraçadas que divertem seus familiares até hoje. Como quando Vó Cida contava uma piada que só ela entendia, mas todos riam por vê-la rir - e riem até hoje, mesmo sem entender a graça da piada!

Reforma de casa também era com ela, que inclusive colocava a mão na massa, tanto que uma vez caiu do telhado e quebrou o nariz. E quando, ainda com a tala no rosto, disse, ante do assombro dos netos, que o nariz agora "tinha ficado até mais bonito". Espontânea, verdadeira e vaidosa, sempre.

Falando em vaidade, Vó Cida foi uma mulher à frente de seu tempo. Cabeleireira por toda a vida, cuidou do penteado de muitas chacretes, as dançarinas do programa de TV do Chacrinha, um grande sucesso popular. Em sua juventude, estava sempre impecável: cabelos e unhas feitas, pele hidratada e um batonzinho, claro!

E era assim, linda e arrumada, que ia dançar no Baile da Saudade quando solteira, sob o codinome "Marlene" - mais um material de piadas eternas para a sua família. Amava a dança tanto quanto amava jogar baralho, prática sagrada com seu companheiro, ao longo de muitas madrugadas.

Vó Cida tinha essas suas certezas, tradições. Outra delas: todo domingo era dia de macarrão! E ela criou uma tradição familiar, quando sua mãe morreu, e passou a não comer mais carne às sextas-feiras, acreditando que assim livraria toda a família de ter câncer (com sua partida, uma das filhas assumiu o hábito).

E ela tinha seu humor, característico, meio carrancudo. Monica conta que toda vez, no almoço da família, ela recebia a avó com a pergunta: "Oi vó! O que conta de novo?", "Nada de novo!", "E o que você conta de velho?", e sempre ouvia: "Eu. Só eu".

Com o passar dos anos, porém, Camila diz que a avó "foi precisando ser mais cuidada e isso a deixou um pouco mais amolecida". Um exemplo foi a sua reação à primeira festa surpresa que ganhou na vida.

Em 2019, ao completar 80 anos, a família toda se reuniu em segredo, encomendou balões dourados com o 8 e o 0, bolo, tudo muito especial para a comemoração: "Foi a primeira vez que eu vi minha avó chorar em frente aos netos: quando a gente falou 'surpresaaa!'. A luta dela, nessa vida, foi entender que ela podia ser amada. E tenho certeza que ela se foi sabendo disso", conta Camila.

E foi mesmo amada, por todos, a todo o tempo, de várias formas. Há maneira melhor e mais bonita de partir do que esta, sabendo que deixou esse tanto?

Maria nasceu em Angatuba (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 80 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Maria, Monica Lages. Este tributo foi apurado por Phydia de Athayde, editado por Gabriela Monteiro, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 29 de julho de 2020.