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Maria de Lourdes Gonçalves Freire

1948 - 2020

Tinha dois sonhos: um era viver até os 100 anos, o outro era ter sua barraca reformada pelo Luciano Huck.

Maria de Lourdes, mulher cheia de coragem que partiu do Ceará para deixar para trás os horrores da fome e da convivência com um marido abusivo e violento. A bagagem física era pouca, e foi levada no colo: três filhos menores; mas o coração foi cheio de esperança em construir ─ longe dali ─, uma vida diferente.

Fez do Rio de Janeiro sua nova morada. A pobreza era imensa, as dificuldades, inúmeras. Maria de Lourdes nunca esmoreceu. Viveu com os filhos num quartinho, o banheiro era fora, não havia cama. Na hora de dormir, banhava os pequenos, enfileirava-os numa coberta limpa no chão, ligava o radinho de pilha e cantava junto com as músicas, até pegar no sono ─ ela e as crianças.

Jamais recusou trabalho. Foi diarista, cozinheira de restaurante, costureira e arrumadeira de motel. A filha Gilda lembra-se de uma época em que Maria de Lourdes fazia faxina durante o dia e varava as noites costurando bolsas para uma fábrica; as bolsas vinham cortadas e ela montava, costurando na máquina ─ mil bolsas por noite.

Foi assim, batalhando e trabalhando duro que Maria de Lourdes criou os filhos. Nas fases mais difíceis, chegaram a passar fome. Quando foi demitida de um restaurante, sem receber seus direitos, mesmo tendo entrado na justiça, decidiu trabalhar por conta própria. Maria virou camelô. Fazia bolos e levava quatro ou cinco deles, e mais umas dez garrafas de café para o terminal 350, no Bairro da Lapa, no Rio de Janeiro.

As incontáveis dificuldades da vida não serviram de desculpa para que deixasse de socorrer aqueles que ficassem sem moradia. Seu quartinho era pequeno na metragem, mas gigante na capacidade de abrigar com afeto cada um de seus filhos. Filho de Maria de Lourdes não ficava desamparado, não senhor!

Depois de alguns anos carregando seus bolos e garrafas térmicas num carrinho de feira, fizesse chuva, frio ou um sol de derreter asfalto, conseguiu uma licença da prefeitura para colocar no terminal uma barraquinha de lanches. E mesmo já contando 72 anos de uma vida mais do que sacrificada, mesmo tendo já se aposentado, Maria de Lourdes fazia questão de seguir trabalhando.

Certa vez, teve úlceras nas pernas, ficou cheia de feridas. Chegava a ligar chorando de dor para a filha Gilda no meio da madrugada. Mas acha que isso a impedia de ir trabalhar? Imagine! Ela fazia um curativo como podia, enrolava as pernas em saquinhos plásticos e ia com seu carrinho vender seus bolos e seu café ─ o velho guarda-chuva servia de bengala.

Quando chegou o Dia das Mães, a outra filha que mora no Ceará, e é enfermeira, veio de surpresa. A ideia era participar da comemoração do aniversário de Maria de Lourdes, em 8 de maio, mais o Dia das Mães e cuidar das feridas nas pernas da mãezinha. Maria de Lourdes ficou boa das úlceras nas pernas. Ficou boa e ficou feliz demais! Porque a maior alegria dessa cearense cheia de coragem, energia e felicidade era ver a filharada reunida.

E Gilda conta que sempre fez questão de abrir sua casa para os aniversários, a festinha de Dia das Mães e o Natal. Como ela gostava do Natal! Mal a mesa da ceia era posta, ela já tratava de atacar a coxa do peru! Adorava fazer graça com isso. Aliás, Maria de Lourdes era uma pessoa feliz, apesar de tantas adversidades que enfrentou, gostava de brincar e de contar piadas, vivia "mangando" de todo mundo ─ como ela mesma dizia.

A filha conta que no Natal de 2019 a mãe estava muito animada e sorridente, alegre como há muito não ficava. Desde 2015, quando perdeu uma das filhas ─ vítima de um infarto ─, Maria de Lourdes andava meio tristonha no Natal. Mas nesse, foi diferente: ela brincou, riu e se divertiu.

Maria de Lourdes nunca se mudou do quartinho que alugou quando chegou ao Rio; morou lá por vinte e nove anos. E, também, conservou a mania de dormir no chão. À época que veio do Ceará não tinha mesmo cama, pois não podia comprar; mas agora, até podia ter uma, mas nunca quis, dizia que não se acostumava mais.

Todos sentem demais a falta dessa mãe que, apesar de todos os sacrifícios, fazia questão de juntar a família todinha, todo santo domingo, para comerem seu inigualável frango ensopado com farofa. Ninguém sabe qual era a mágica, mas Maria de Lourdes fazia render a tal farofa.

"Minha mãe tinha dois sonhos na vida: um, era viver até os 100 anos, o outro, era um dia o ver o Luciano Huck; ela escreveu milhares de cartas pra ele. O sonho dela era que um dia ele aparecesse na barraquinha dela e transformasse; detestava os finais de semana, mas assistir aos programas dele, no sábado, mudava tudo: ela ficava feliz", conta Gilda.

Essa mulher tão valorosa surpreendeu sua família até depois de partir. Ela adorava postar fotos e era muito ativa em seu perfil nas redes sociais. Vivia dizendo que quando morresse queria ser cremada. A família jamais teria condições de realizar o sonho da mãe, dado o alto valor de uma cerimônia dessas. Pois, aconteceu que seus amigos do terminal 350 ─ motoristas de táxi e de aplicativos, fregueses de seus lanches, bolos e cafés, mais os amigos do TRE ─, fizeram uma vaquinha e deram à querida amiga a tão sonhada e honrada despedida.

Maria de Lourdes agora brilha no Céu, entre todos os anjos que certamente a guiaram aqui na Terra, ajudando-a a superar tantos obstáculos, a vencer tantas lutas. Tua luta terminou, querida. Descansa agora. Fica em paz. Teus filhos, filhas, netos e netas seguirão aqui honrando todo o teu esforço para dar a cada um o melhor que pôde dar.

Maria nasceu em Santa Quitéria (CE) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 72 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Maria, Gilda Gonçalves Freire. Este tributo foi apurado por Júllia Cássia, editado por Ana Macarini, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 14 de novembro de 2020.