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Maria de Lourdes Soares Jacintho

1960 - 2020

Entrou na faculdade de nutrição inspirada por profissionais da UPA em que era copeira.

Quando menina, dona Maria gostava de brincar de professora. Os esmaltes eram os alunos dela. Ela também amava usar os sapatos de salto alto da mãe. Maria dividia esse tempo de faz de conta com a família de cinco irmãos em sua terra Natal.

Aos 17 anos, ela mudou-se para Diadema (SP) para cuidar do sobrinho Erick. A diversão nessa época era sair com as amigas do condomínio em que morava.

Aos 23 anos, conheceu o marido, Francisco Carlos, um dia antes do aniversário dele. Ela ficou grávida rápido, casaram-se logo e tiveram a primeira filha, Bianca. Depois, vieram os filhos Amanda e Carlos Eduardo. Francisco e Maria ainda criaram a sobrinha Mônica, dos 7 aos 15 anos, aproximadamente. Ela era coruja com os filhos. Na infância deles, passeavam muito, pescavam, iam à praia e muito mais.

"Tivemos uma criação muito afetiva. Além de serem excelentes, meu pai e mãe mantiveram o respeito e paixão até o fim. Eu e meus irmãos falamos que eles não nasceram, foram fabricados, de tão bons, conosco e como casal. E não digo isso porque minha mãe se foi, mas porque a forma como eles nos criaram e eram um com o outro, apegados e sempre apaixonados, é rara", relembra Bianca.

Durante um tempo, dona Maria de Lourdes trabalhou com venda de salgados que fazia em casa para uma clientela fiel. Conquistou fregueses de empresas e tinha endereço certo para as entregas. Depois, atuou como telefonista até passar em um concurso como copeira em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). A filha Bianca acredita que foi na copa que ela encantou-se com o trabalho das nutricionistas e decidiu começar um curso superior para tornar-se uma.

Era uma aluna aplicada. Nos dias em que tinha aula presencial e trabalhava, era uma correria. O marido ficava a espera na porta da UPA para levá-la, pois parava às 19h, mesmo horário em que as aulas começavam.

"Ela montou um escritório em casa, com o que tinha de melhor, comprou uma impressora. Nos dias de folga, logo depois dos afazeres, dizia que ia estudar, avisava e fechava a porta para concentrar-se. Ela já estava no segundo ou terceiro semestre", conta a filha.

Ao começar a estudar, dona Maria fez um voto para Deus: dedicar-se a atendimentos gratuitos uma vez por semana quando obtivesse o diploma. Também brincava que seria a nutricionista da família.

Bianca, os filhos e marido moravam com a universitária de nutrição para cuidarem juntos da mãe de Maria, que foi vítima de um AVC. Na casa, a mãe de Francisco também vivia com eles. Bianca conta que as tarefas sempre foram muito bem divididas. "Eu e minha mãe brigávamos todos os dias por causa de arrumação de casa, ela era muito organizada e queria tudo do jeito dela, mas sentimos muita falta. Com a sogra dela, minha avó, era a mesma coisa, mas ela morre de saudades", afirma.

Apesar de ser maravilhosa como mãe, dona Maria conseguiu se superar como avó.

"Era dez vezes ainda melhor com os netos", a filha garante. "Ela pegava todas as crianças, levava ao centro, shopping, coisa que as mães dos meninos não tinham coragem de fazer. Quando diziam que ela era doida por sair com aquela turminha, a avó respondia: "Deixa eu, vou sair com meus netos".

"Às vezes, ela tinha três dias direto de folga, passava todo esse tempo 'corujando' os netos. Fazia cabaninha, comprava tudo que queriam nas lojas de R$1, levava para comer besteiras, assistia a diversos filmes com a meninada", relata a filha.

Quando a pandemia começou, ela continuou a trabalhar na UPA. Ao contrair o vírus, o carinho da família continuou. Francisco, o marido, como em toda vida, agiu com todo seu amor e paixão pela esposa. O casal se falou enquanto foi possível por videochamada. Quando ele soube que ela faria um exame, não pensou duas vezes e madrugou no hospital. Chegou às 6h, esperou por cinco horas para vê-la passar, já que não podia ir no quarto, e dar tchau no corredor. Foi o adeus apaixonado do casal que nunca deixou de parecer com dois adolescentes que haviam acabado de se conhecer.

A luta de Dona Maria de Lourdes contra a covid foi reconhecida com uma carta e placa de homenagem "da Associação Paulista de Medicina" de São Bernardo do Campo/Diadema, entidade à frente da UPA em que atuava.

Ela deixou várias lembranças por onde passou. Os netos que ela tanto "corujava" esbarram nas memórias e falam na vovó. A família guarda no coração quem foi amor em cada gesto.

Maria nasceu em Campos dos Goytacazes (RJ) e faleceu em São Bernardo do Campo (SP), aos 59 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Maria, Bianca Soares Jacintho Oliveira. Este tributo foi apurado por , editado por , revisado por Renata Nascimento Montanari e moderado por Rayane Urani em 19 de maio de 2021.