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Maria do Carmo de Oliveira

1937 - 2020

No balanço da vida, dançou sob adversidades e sapateou com o encanto de uma jornada vencida com dignidade.

Maria do Carmo foi uma mulher que tinha suas contradições. Ao mesmo tempo que não largava sua fiel companheira — a garrafa de água gelada — a qual bebia o dia inteiro, e não deixava de passar sua manteiga de cacau para não ressecar a boca; também era a mesma Maria do Carmo que enfiava a cara nas besteiras e vivia com a geladeira cheia de doces.

Também era conhecida por ser severa e firme com suas duas filhas, Teresa e Rita. Mas, mesmo se chegasse às 22 horas em casa, depois de um dia exaustivo de trabalho, era a mesma Maria do Carmo que corria atrás de algum comércio aberto trazendo algo diferente para fazer a vontade das filhas.

Talvez nem fosse uma contradição e sim um coração que cedia aos apelos de quem amava ou às doçuras que a vida teve a oferecer.

Além de um peito afetuoso, Carminha, como era carinhosamente conhecida, era sinônimo de dança. Na juventude parava os bailes, ganhou vários concursos e se tornou até professora de dança. Mas não era só com o ritmo do corpo que Carminha se garantia na vida: com a comunicação e a rapidez nos cálculos tirou o sustento da família, onde atuou como mãe e pai.

Maria do Carmo, apesar de ter tido a oportunidade de cursar somente até a quarta série, pegou com rapidez os ensinamentos da vida, que a proporcionou o poder de convencimento nas vendas e a destreza com números, ambos incomparáveis. Tinha muito papo e, como vendedora, em um mês de trabalho já tinha virado gerente da loja. As filhas, brincando com tamanha lábia da mãe diziam: “Se a gente te der cocô em pó, a senhora vende.”

Tanto jeito para entender a vida se deu, em parte, porque ela também foi uma mulher muito bem-informada, amava escutar rádio quando mais jovem e, com o passar do tempo, não abria mão de assistir a um telejornal. Com tanta história que acompanhou e viveu na própria pele, não era de se estranhar como Maria gostava de uma prosa. Desenterrava, do fundo do baú, suas memórias. Era uma verdadeira narradora de seus relatos.

O mesmo apreço por histórias levou Carminha a proporcionar, desde cedo, às filhas o que não pôde ter: o acesso à educação. E assim, na luta diária que enfrentou nas madrugadas, bancou estudos privados para as duas filhas, cultivou hábitos literários nas meninas, levou-as em exposições e as manteve em contato com a arte. Sempre foi uma mulher à frente do seu tempo.

Enfrentou a guerra contra a depressão deixando uma emocionante lembrança de sua vitória. Após um mês longe de casa e de suas meninas — quando ainda eram adolescentes — tratando-se dessa doença avassaladora, voltou com força total e comemorou um Natal com poucos recursos, mas com a maior riqueza servida à mesa: a união da família de volta. Nesse Natal, celebraram o recomeço.

Muito amada pelos sobrinhos e netos, foi muito presente em suas vidas e fez sucesso com as crianças devido à geladeira cheia de doces que conservava. Era viciada em açaí. Adorava café e só comia de bandeja, igual madame.

Criada como Católica, mantinha certas tradições como a devoção a Cosme e Damião, mas ao longo da vida, deu abertura às novas experiências de fé. Praticou a imparcialidade de aceitar as pessoas como elas eram, era uma pessoa que se dava com qualquer um e não fazia distinção. Não descartava seres humanos e acolhia tanto os de dentro quanto os de fora.

No final da vida, apesar de ter perdido um pouco daquela alegria, ainda fazia piada da vida e caçoava junto com a família e amigos. Em suas últimas palavras, sua filha Teresa perguntou num tom bajulador se ela era a filha preferida. Maria do Carmo concordou e riu das graças da filha. E assim ela era, apesar de gostar de um drama, se quebrava com as piadas e com as memórias que guardava.

Hoje, quando se lembram do que foi a sua exuberante simplicidade de viver, Carminha aquece os corações daqueles que ficaram sem a sua presença.

Maria nasceu em São Gonçalo (RJ) e faleceu em São Gonçalo (RJ), aos 82 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Maria, Teresa Cristina de Oliveira Querne. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Júllia Cássia Silva Batista, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 16 de novembro de 2020.