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Maria Eliana Gonçalves Machado

1929 - 2020

Sua casa vivia cheia de jovens em busca de orientação; para cada um tinha sempre uma bênção e um carinho.

Avós são segundas mães, as mães com açúcar. Mas, às vezes, também assumem o papel de dar broncas e conselhos. Assim era Maria Eliana, que não gostava de ser chamada de dona Maria, apenas de Eliana. "Ela foi minha mãe quando sua filha tinha que trabalhar, foi meu pai quando o mesmo esteve ausente, foi avó quando se tratava de me mimar e de fazer minhas vontades, professora - até de francês -, e conselheira. Dela recebi carinho, amor incondicional e reprimendas, quando as merecia. Também me ensinou como ser tolerante, tudo que sei aprendi com ela", conta a neta Carolina.

Nascida em uma família de seis irmãos, Eliana foi registrada na Cidade Maravilhosa. Filha de João Baptista Gonçalves e de Livia Pinheiro Gonçalves, cresceu numa fazenda, sempre livre. Tomava banho de rio, andava com os pés descalços, comia frutas do pé, subia em árvores, "um verdadeiro moleque de saias", nas palavras de Myriam, sua filha do meio.

Quando adolescente, Eliana estudou em colégios de freiras nas cidades serranas de Petrópolis e Friburgo. Ao terminar o curso magistério, retornou ao Rio de Janeiro, pois percebeu que teria de ir para a capital fluminense se quisesse trabalhar. Entretanto, nunca exerceu a profissão formalmente.

Embora tenha vivido uma infância de liberdade, Eliana garantia não ser nostálgica. Afirmava que descobriu a felicidade quando conheceu e se casou com o português Francisco Machado, homem de personalidade forte que a amava incondicionalmente. Da união que atravessou mais de quatro décadas vieram os três filhos: Paulo, Myriam e Jayme, sete netos e um bisneto.

O dom de Eliana para ensinar era notável. Explicava de forma clara e simples, não havia criança que saísse com dúvidas nas lições apresentadas. Sorte dos filhos, netos e vizinhos, para os quais dava aulas sem cobrar nada. A matriarca ressaltava que a melhor herança que alguém poderia deixar para os descendentes é a cultura. Tinha uma memória incrível! Lembrava de datas de aniversários, telefones, endereços e ruas. Mesmo com a idade avançada, sabia o nome de todos os remédios que tomava e para o que servia cada um deles.

A caridade e solidariedade de Eliana também se manifestavam nas dezenas de contribuições que fazia para hospitais, creches e deficientes visuais. Bastava aparecer alguém necessitado para ela se compadecer e ajudar. Por isso, era querida por todos. Sua casa vivia cheia dos amigos dos filhos e de jovens, que a tinham como mãe. Muitas vezes eles vinham atrás dos bons conselhos da mestra. Noutras, os encontros aconteciam para falar besteiras e rir solto.

Católica devota, a avó não faltava à missa de jeito nenhum. "Domingo é o Dia do Senhor", explicava. Rezava diariamente por todos que estavam precisando ou e por aqueles que pediam que ela os acrescentasse em sua reza. "Falavam que vovó tinha acesso direito com Deus", lembra a neta.

Vaidosa com pouquíssimas coisas, gostava de estar com os cabelos impecáveis, cheirosa e com as unhas cortadas. "Uma mulher muito simples, sem melindres ou cerimônias. Minha avó era conselheira, amiga, paciente, generosa, gentil e tolerante", enumera Carolina.

Eliana também foi uma leitora compulsiva. Amava os livros e era dona de um vocabulário invejável. Gostava de assistir televisão, de cozinhar e de conversar. "Não falava alto de jeito nenhum; aliás, nunca gritou", pondera Carolina. "Ela sempre estava pronta para ajudar, ouvir, aconselhar e até mesmo chamar a nossa atenção, mas sempre respeitando cada um. Vovó tinha o costume de conceder bênçãos e de corrigir os filhos e netos; mesmo quando ficou doente, não abandonou a missão escolhida", recorda a saudosa neta.

Carolina confessa que amava se deitar na cama da avó só para levar uma bronca. "Toda vez era a mesma coisa: ela reclamava ao me ver esparramada lá, pois, segundo ela, eu não era mais criança, estava gorda e grande, e nós duas juntas não cabíamos mais no mesmo espaço. Mas a verdade é que minha avó nunca me expulsou. Vinha, se deitava ao meu lado e me esperava agarrá-la num abraço".

Altiva, Eliana não suportava depender de ninguém. Idosa na idade, seguia cozinhando, lavando, passando... "Fazia questão de fazer tudo, inclusive ir ao médico sozinha, o que deixou de fazer somente por insistência dos filhos, mas um pouco contrariada", revela Carolina, acrescentando que a força da avó estava até nas palavras difíceis que às vezes empregava, e nas atitudes: "Ela era do tipo de pessoa que chegava do ladinho, e mandava um 'senta aqui'. Nessa hora, já era", ri a neta.

"Nossa guerreira foi vencida", lamenta a a filha Myriam. Permanecem as saudades e memórias de uma mãe e avó amiga de todas as horas, paciente e amorosa ao extremo, para aquecer o coração da família e dos amigos.

Maria nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 91 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Maria, Carolina Machado Vieira. Este tributo foi apurado por Daniel Ventura Damaceno, editado por Luciana Assunção, revisado por Claiane Lamperth e moderado por Ana Macarini em 2 de dezembro de 2021.