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Maria José de Barros

1939 - 2020

De inabalável alegria, foi contadora de causos; forte e mansa como uma brisa nordestina.

Tia Nêga, como era carinhosamente chamada por sua família, foi uma mulher "inteligente, curiosa e que amava tudo o que era belo", define a primogênita, Walkyria.

Uma aluna aplicada, sempre estudou em escola pública, onde participava de aulas de francês e concursos de beleza. "Ela dizia que era ótima em ditados da língua francesa. Aliás, se tivesse tido oportunidade, adoraria falar francês fluente. Era um sonho!", conta Walkyria.

Era a mais nova das suas irmãs e, aos 20 anos, saiu do interior de Alagoas rumo à grande São Paulo, como foi o trajeto de tantas nordestinas que, como ela, tiveram uma vida difícil. Foi doméstica por muitos anos até conhecer, apaixonar-se e rapidamente casar-se com o pai dos seus três primeiros filhos: duas meninas e um menino, que faleceu ainda criança. A dor da perda do filho juntou-se à partida do esposo, falecido algum tempo antes.

Anos depois, Nêga conheceu Wenceslau, a quem chamava de Nêgo, e com quem veio a se casar e permanecer. Com Nêgo teve a sua filha caçula e, a partir do nascimento dela, passou a trabalhar como copeira em grandes hospitais paulistas. "Ela foi muito feliz desempenhando seu ofício, pois se sentia importante cuidando das dietas dos pacientes. Aposentou-se aos 65 anos...", lembra Walkyria.

Além de grande mãe para as filhas: Kira, como chamava Walkyria; Tica, como chamava a filha Nora; e Dê, a filha Denise, Nêga foi uma "amiga maravilhosa para todos". De "cabeça ótima", era cúmplice nas dificuldades e não deixava de prestar apoio a quem quer que lhe pedisse ajuda. "As pessoas gostavam de conversar com ela, que não tinha preconceitos e tratava os assuntos mais bicudos com muita praticidade", diz Kira.

Ela prossegue, e conta que tia Nêga cuidava com dedicação dos animais, fosse do seu cachorro vira-lata, Totó, fosse do Snoopy, shih tzu das crianças, ou os cachorros e gatos de rua e dos vizinhos. Todas as noites ela dizia: "Daqui a pouco os meus ‘freguês’ vem". E então estendia um papelão e colocava sobre ele bastante comida. Misturava a sobra de arroz e carnes, picadinhas por ela, que também acrescentava à mistura a ração de Totó. Punha as vasilhas de água e logo vinham 'os freguês' para jantar. "Na última noite em que ela fez isso, eu estava com ela. Eu até disse “mãe, deixa que eu coloco”, e ela falou: “Não, menina. Olha ali, já estão vindo”. E falava com eles, organizando: “Você já comeu, agora é a vez do fulano...", relembra Kira.

Positiva e alegre, tia Nêga, ou Dona Maria, como era chamada pelos conhecidos e amigos, era vista como uma pessoa especial por suas filhas, sobrinhas, vizinhos e colegas de trabalho com quem manteve contato. "Ela era uma pessoa muito mansa, mas muito assertiva e muito forte. A nossa vida foi – e ainda é – uma vida de luta. Então, ela sempre foi um pilar, uma coluna de forças para nós. E em muitos sentidos: na presença, nas palavras de esperança e nas atitudes que davam à vida mais fluidez. Isso requer muita força e muita energia e não dureza, pois minha mãe foi, também, extremamente sensível com os animais e com as pessoas... Muita gente se dedica ao cuidado. Ela era uma delas", conta, orgulhosamente, Kira.

Como sagitariana nata, Nêga também era festeira. Dentre os muitos gostos, estava o de dançar. Mas essa paixão, lembra Kira, se dava porque, antes de qualquer coisa, Nêga amava a música. "Ela gostava desde Frank Aguiar e Anitta até sinfonias... Usava CDs, que pedia para a gente gravar, ou comprava. Se bem que, ultimamente, passou a usar pendrives. Ela levantava pela manhã e colocava as músicas para tocar em seu aparelho de som. Um dia ela escutava o Aguiar, no outro dia Beth Carvalho, em outro Agnaldo Timóteo. Inclusive, esse último ela adorava. Algumas vezes até falamos “mãe, vamos para um show de Agnaldo Timóteo”, e ela dizia: “Deus me livre! Eu vou chorar o show inteiro, será uma vergonha. É bem capaz que eu até tenha um desmaio”, relembra Kira, que continua: "Ela realmente gostava muito de música. Era de um jeito que ouvia com satisfação as crianças cantando no programa do Raul Gil."

"Ela fez algumas cirurgias como para colocar marcapasso e retirar a vesícula. Nessa última, após um tempo de recuperação, fizemos uma feijoada para receber os primos, tios e sobrinhos que viriam visitá-la. E ela dançou com todo mundo. Na verdade, ela dançava bastante, o que ela queria era dançar, mesmo! E então, os genros e os sobrinhos e, de certa forma, todo mundo, ficavam meio assim... E ela falava: “Venham dançar. Ai, vocês não dançam mais. No meu tempo...” e aí ela começava a contar os seus famosos causos", diz a filha.

Uma das características marcantes de Nêga era a de ser uma exímia contadora de "causos". Alguns reais, outros até mesmo inventados, como conta Kira: "Os seus causos arrancavam muitos risos e apenas ela sabia contá-los. Vou tentar falar um aqui... Ela dizia que, na época da escola tinha pernas tão bonitas, a ponto de ter ganhado concurso de pernas! Ela também dizia que gostava de paquerar rapazes bonitos, o que rendeu muitas histórias, como a seguinte: A minha mãe, quando moça, era muito magrinha. Aos 15 anos, passou a paquerar um rapaz, que combinou de ir em sua casa, numa tarde. Nessa casa tinha muitas moças, pois ela tinha muitas irmãs. Ao chegar na casa, o rapaz foi recebido com a fala de uma de suas sobrinhas, – filha de uma irmã mais velha – que disse: "A tia Nêga é tão magra, tão magra, que a minha avó só a chama de 'periquito seco'. Por conta do que a sobrinha falou para o rapaz, ela ficou morrendo de vergonha e para ele nem olhava mais. Já paquerava outro!"

Nêga também era cheia de manias. Uma mulher pequenina e aparentemente frágil, mas que rompia com a aparência e comandava tudo. "Com jeitinho ela mandava em todo mundo. Por exemplo, quando íamos combinar o almoço de domingo e ela perguntava “o que vocês acham de fazermos lasanha?”, se alguém dissesse outra coisa era perda de tempo porque ela já tinha resolvido. Ela não estava perguntando, ela estava dizendo: “então, gente, vou fazer lasanha", conta a filha.

As três filhas, os genros Zé, Júnior e Cris, seus netos Ana Cláudia, Liz, Vitor e Stella, os bisnetos Otávio e Isabel, que deram a ela o orgulho de dizer que já era bisavó, sentem imensamente a sua falta. Liz e Vitor foram cuidados pela avó desde muito pequenos, o que ela fazia para que a sua filha pudesse trabalhar. Fez do Vitor seu "passarinho", como ela própria o chamava, já que rotineiramente montava com cobertores, um ninho no sofá da sala, onde o passarinho recebia um leite quente preparado pela vó Maria.

Ela sempre dizia: “Quando eu morrer, não me deixa ir sem uma meia bem quentinha, não me deixa ir sem estar agasalhada e coloquem música no meu velório. Eu não quero tristeza, eu quero alegria. E música é alegria”. A música “no more boleros” foi apresentado por Nêga à filha Kira, e era a canção que ela desejava que embalasse a sua partida. "Não pudemos vesti-la com a roupa quentinha, mas eu a pus em cima do caixão. E colocamos para tocar 'no more boleros' durante o sepultamento", conta Kira, que finaliza a sua homenagem afirmando: "A minha mãe era linda, uma pessoa linda, não um número. Hoje, não quero relembrar a trajetória sofrida da covid, quero fazer memória da minha mãe real, otimista e que sempre acreditou na vida. Essa era a minha mãe".

Maria nasceu Santana do Mundaú (AL) e faleceu São Paulo (SP), aos 80 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Maria, Walkyria de Barros. Este tributo foi apurado por Lila Gmeiner, editado por Luciana Fonseca, revisado por Sandra Maia e moderado por Rayane Urani em 6 de março de 2021.