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Maria José de Souza

1950 - 2020

Retirava o seu sustento como artesã de uma feirinha à beira-mar.

Ela nasceu numa família pernambucana numerosa, que, com dificuldades para cuidar de tantos filhos, entregou-a aos cuidados de sua bisavó.

Era reservada em relação à sua história e não contava detalhes de sua vida, mas, para a família, estas informações não eram necessárias perante o carinho e amor que ela espalhava.

Aos 14 anos mudou-se para o Rio de Janeiro onde começou a trabalhar como babá. Com essa idade teve Luís, seu primeiro filho, fruto de seu primeiro relacionamento. Depois, de seu segundo relacionamento veio Deilton. Com as duas crianças, mudou-se para São Paulo para morar perto de alguns familiares e trabalhar como empregada doméstica.

Em São Paulo conheceu Alvino, com quem teve sua única filha, Meire, e que cuidou dos três filhos como se dele fossem. Após muitos anos, eles se separaram e, embora tenham vivido um tempo separados, reencontraram-se na velhice. Quando Alvino enfrentou um derrame e precisou de cuidados médicos e diários, foi Dona Maria José quem cuidou dele. Quando não pôde mais cuidar sozinha, contou com o auxílio da filha. Nesse período resistiu ao convite para morar com Meire porque queria preservar coisas que muito valorizava: sua casa, seu trabalho, sua vida e sua liberdade.

Dona Maria José sempre trabalhou muito e tinha gosto em apresentar seu ambiente de trabalho para as pessoas. Não gostava de ficar sem serviço, estava sempre se ocupando para não perder tempo e se não sabia fazer alguma coisa, logo aprendia. Ganhava o seu pão numa feirinha de comidas e artesanato, daquelas típicas de litoral, que ficam bem pertinho da praia. Por lá fez de tudo: no começo vendia alimentos, depois aprendeu a fazer artesanatos e, por fim, conseguiu seu próprio espaço como artesã. Lá permaneceu tantos anos, que seus colegas de trabalho acompanharam seus filhos e netos crescerem.

Além do trabalho na feira, era cozinheira e uma guerreira, que aprendia tudo com facilidade. Gostava da família, mas sua paixão maior era mesmo os netos! Estava sempre na cozinha fazendo comidas gostosas e suas mãos de fada dominavam a arte de cozinhar. Os pratos que preparava representavam o verdadeiro significado da expressão “Comida de Vó”.

E foi assim que passou os últimos anos de sua vida após o falecimento de Alvino. Nunca parou de trabalhar, mas soube também aproveitar o tempo, viajando com as amigas e visitando a mãe em Pernambuco.

Larissa, uma de suas netas, recorda-se que certa vez acompanhou a avó em uma dessas viagens e destaca a forma afetuosa como foi apresentada aos familiares e às pessoas de sua região natal. Nessa mesma viagem, Maria José, atualizada com a modernidade, fazia ligações diárias e deixava recadinhos de áudio e vídeo no aplicativo de mensagens, que aprendeu a usar motivada pelo desejo de manter contato com os netos.

Ela possuía uma relação muito particular com os netos, e gostava que todos dormissem na cama dela durante as visitas. Eram quatro pessoas dormindo na mesma cama e ela não reclamava. Sempre buscava tê-los por perto e os ensinava coisas, como cozinhar, trabalhar para conquistar suas próprias coisas e a amar os animais e as pessoas.

As viagens dos netos à casa da avó deixaram lembranças inesquecíveis: “Ela amava fazer comida para nós e sempre que estávamos na casa dela por alguns dias, ela separava um tempinho para ir à praia com a gente, coisa que, mesmo morando no litoral, ela fazia muito pouco. Ficávamos a manhã todinha na praia com ela, conversando e rindo. Voltávamos para casa e começávamos os preparativos para trabalhar com ela à noite, na feirinha”.

A neta Larissa relembra também: “Sempre que a gente passava uns dias na casa dela, ela nos levava junto para trabalhar. A feirinha toda nos viu crescer, porque ela fazia questão de sempre nos mostrar para todos de lá. E ela adorava aquele lugar. Aquela feirinha acabou se tornando uma grande família para ela”.

Sempre que chegava a hora de se despedir dos netos, apareciam lágrimas em seus olhos. Larissa, Maria, Giovanna e Gabriel afirmam: “Possuía os cabelos mais macios que já se conheceu. Fomos e sempre seremos os netos da Vó Maria José. Aprendemos com ela algo que não esqueceremos jamais: o poder do amor! Poder expressar o carinho e um “eu te amo, vó” era libertador. E esse carinho todo, é o pedacinho dela que permanece em nossas vidas”.

Quando faleceu, ela literalmente descansou, após anos de trabalho intenso. E, segundo os netos, “agora ela está nos olhando, lá de onde está, vendo o rebanho de mulheres que ela criou — fortes e independentes como ela”.

Maria nasceu em Timbaúba (PE) e faleceu em Praia Grande (SP), aos 69 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelos netos de Maria, Larissa Emely da Silva Almeida e seus irmãos Maria, Giovanna e Gabriel. Este tributo foi apurado por Daniel Ventura Damaceno, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 5 de dezembro de 2021.