Sobre o Inumeráveis

Maria Narcisa da Silva

1935 - 2021

No embalo da cadeira de balanço, moldava a educação do neto narrando suas histórias de vida.

A infância marcada pela ausência da mãe e pelo trabalho doméstico para subsistência da casa não deixou brecha para que Maria Narcisa tivesse acesso aos estudos. Foi criada com dificuldade pelo pai, que perdeu cedo, e depois pela madrasta e familiares. Na dureza da vida, escolheu o casamento precoce como um outro caminho, que lhe rendeu filhos, a violência conjugal e até a procura de restos de comida na feira em busca da sobrevivência e do alimento para os filhos. Esse também não era o destino que Maria Narcisa sonhava para si. Deixou a cidade de Cruzeta com a prole nos braços e correu atrás de um novo futuro. Já na capital potiguar, encontrou no ofício de lavadeira à beira do Rio das Quintas o seu melhor sustento. Ela não imaginava, no entanto, que Waldemar, um ex-combatente da Marinha e alguns anos mais velho, fosse cruzar sua vida e lhe oferecer amor, dignidade e paz no tempo que estava por vir. Do encontro do casal nasceu um filho.

“Dona dos mais belos olhos azuis”, segundo o neto Marcus, Maria Narcisa prosperou o afeto entre os seus tantos netos e bisnetos. Reunia a família em casa e preparava seus melhores quitutes da culinária nordestina com um tempero característico: buchada de bode, carne assada com macaxeira, feijão verde, miolo de cabeça de boi, peixe. Marcus guarda na memória não apenas os sabores apetitosos das comidas, mas a companhia da avó aos domingos de feira, quando lhe puxava o carrinho com as compras da semana. Ele ainda chora ao lembrar das mãos dela socando alho e pimenta no pilão.

A ligação intrínseca entre os dois vem desde o berço: “somos parecidos fisicamente”, ele fala com orgulho. Mais do que amor, Marcus declara gratidão profunda pela avó: “ela proporcionou meus estudos e me libertou das amarras da ignorância e da miséria que ela mesma enfrentou”. De opiniões fortes, Maria Narcisa não esmorecia quando o neto não correspondia com boas notas na escola. Punha-o ao lado da sua cadeira de balanço e lhe dava um sermão: “eram repreensões construtivas, ela resgatava seus sofrimentos e me fazia valorizar a educação recebida”. O garoto ia depois chorar de arrependimento na cama da avó e adormecia. A verdade é que as broncas deram resultado, pois o rapaz seguiu os estudos com ímpeto até a pós-graduação. A fala emocionada revela: “Tivemos uma relação de criador e criatura, éramos parecidos até nas chatices. Minha avó foi o grande amor da minha vida”.

Marcus ainda herdou da avó seu gosto musical. Ela apreciava ouvir Nelson Gonçalves, Waldick Soriano, Altemar Dutra, Maria Bethânia, Roberta Miranda. Católica, escutava também com devoção as preces e músicas de Padre Zezinho, inclusive nas viagens de romaria a Padre Cícero, Frei Damião e Nossa Senhora Aparecida, que fazia sempre na companhia de filha, netos e amigas.

Maria para o mundo e Narcisa para os íntimos não era mulher de deixar a vaidade de lado. Arrumava os cabelos e fazia as unhas com cores chamativas. Esmalte vermelho, perfume e adereços de ouro compunham frequentemente seu visual.

Todas as tardes ela punha a cadeira na calçada para papear com as amigas da vizinhança. “Eu a chamava de fofoqueira”, brinca Marcus. E a avó retrucava: “Eu não falo da vida de ninguém, o povo é que vem na minha porta”. Esse povo da rua São Geraldo, onde ela viveu por mais de trinta anos, saiu à porta pela última vez, em lágrimas, para aplaudir o cortejo de Maria Narcisa na sua despedida.

Maria nasceu em Cruzeta (RN) e faleceu em Natal (RN), aos 85 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo neto de Maria, Marcus Demétrios Garcia Fonsêca. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Fabiana Colturato Aidar, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 3 de agosto de 2023.