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Maria Odete Benício da Silva

1949 - 2021

Uma mulher de espírito livre, Detinha amava viver pelo mundo.

Dona Odete ou Detinha, como se tornou mais conhecida, era uma pessoa muito amada. Foi ainda bem jovem morar na região central de São Paulo, onde compartilhou quartos e conviveu com figuras que vieram a fazer parte da história da música brasileira. Formavam um grupo de amigos bem unidos. Eles se reuniam para cantar, viajar, dançar e ir aos bailes do cantor Benito di Paula, no Clube Palmeiras. E como se divertiam juntos.

Quando se casou, Detinha e o marido, Sr. Crispim, deixaram a Pompéia para morar no Jaraguá, um bairro bastante precário, na época, com muito mato e poucos vizinhos. Alguns deles, inclusive, velhos conhecidos de bailes da região, como era o caso de Elizabeth e Jurandir.

“Dona Odete comentava que do barraco dela podia ver a minha mãe comigo no colo, ainda bebê, saindo para ao trabalho muito cedo em direção ao único ponto de ônibus do bairro, a cerca de meia hora de caminhada entre trilhas no meio do mato e uma estrada meio abandonada”, conta Jurandir Luiz, o filho do casal vizinho. E acrescenta: “Ela falava que não sabia se era por causa da fé que possuía, mas, por vezes, viu uma luz pairando acima de nós”.

Detinha teve diversos empregos na capital e, devido ao talento culinário, chegou até a trabalhar para um ícone da política nacional, antes da abertura do seu buffet, que realizava eventos sociais, jantares e festas.

Sem estudo formal, ela sabia apenas assinar o nome e era dotada de uma memória admirável, conhecia tanto a Bíblia que parecia até que sabia ler.

Autodidata, aprendeu muitas coisas por força de vontade e persistência, e ainda possuía um senso de moda fora do convencional, que dizia ter aprendido com o saudoso estilista Clodovil em seus programas vespertinos de TV.

Batalhadora que era, Detinha ia para o Paraguai buscar encomendas para vender, fazia excursões de sacoleiras para o interior, revendia enxovais, louças e roupas. Ela amava viajar!

Apesar dos muitos problemas de saúde, dava conta de sustentar os três filhos e ainda oferecer o melhor que pudesse a eles. Jurandir Luiz conta que teve momentos na vida em que só comia bife ou alguma mistura na casa dela.

Em sua longa jornada para sustentar a família, a matriarca também foi costureira. A profissão deixou sequelas nas articulações, agravadas após um AVC. Ela chegou a cair e se machucar nas ruas do bairro. Porém, quando viajava - ou "caía na estrada", conforme dizia - para fazer suas compras, Detinha se sentia livre, não apenas na vida, mas também de suas dores e doenças.

Das vezes que Jurandir Luiz a acompanhou, ficava admirado de ver como Detinha, como seu espírito viajante, se misturava na multidão e desaparecia, sem que ele conseguisse acompanhá-la.

Quando a mãe do rapaz partiu, Dona Odete atendeu o pedido da amiga para cuidar dos seus filhos, e desempenhou a tarefa com muito carinho. "Eu me aproximei especialmente dela nesta época, pois me sentia sozinho. Tudo aconteceu de maneira muito natural, pois minhas irmãs, eu e os filhos dela éramos todos amigos e nos tratávamos como primos", diz Jurandir Luiz.

Aos poucos, além de protetora da família, Detinha tornou-se também uma amiga, que ofertava conselhos, e ouvia os anseios e as dúvidas sobre a vida do rapaz; principalmente na época da adolescências.

A sábia amiga, por exemplo, aconselhou o rapaz a escrever para superar uma grande decepção amorosa. “Fiquei surpreso, pois ela não era alfabetizada e estava me aconselhando a escrever para esquecer. Decidi acatar o conselho e realmente funcionou! Foi terapêutico!”, revela Jurandir Luiz.

A história foi parar num concurso literário e selecionado para participar de uma antologia, gerando uma tremenda alegria. E graças a Detinha, Jurandir casou-se com a melhor amiga e antiga paixão da adolescência. Foi por influência e responsabilidade direta de Dona Odete que o casal se reaproximou.

Para Jurandir Luiz, havia uma ajuda mutua entre ele e Dona Odete. Quando ela precisava torcer roupas, por exemplo, o rapaz assumia a tarefa se estivesse por perto, pois a amiga havia perdido a força muscular para tal afazer. Às vezes ela acabava se aventurando sozinha e acordava com muitas dores e o braço inchado. “Até que um dia, vi uma centrífuga à venda numa lojinha do bairro e imediatamente comprei pra ela de presente, com a maior alegria”, declara o vizinho.

Certa vez, ele notou que Dona Odete andava um pouco triste e soube que o motivo era a venda da centrífuga. Sentiu-se inconformado, já que havia feito um sacrifício para comprá-la, e nem ele possuía uma dessas em casa. Mas, depois, refletindo junto com Detinha, compreendeu que a venda ocorrera por severas privações financeiras e acabou apoiando a amiga.

Todo mês era uma luta para a matriarca fechar as contas, mas os medicamentos dela e o alimento da família eram sagrados. Dona Odete ensinara que os bens adquiridos podem se transformar em dinheiro quando a necessidade aparece, e que através do trabalho é possível conquistá-los novamente, pois o mais importante é ter saúde e comida.

Detinha amava música e, assim como Jurandir Luiz, era muito fã de Elvis Presley. Os dois costumavam conversar sobre os filmes estrelados pelo rei do rock, que ela acompanhava desde jovem, e a história do ídolo em comum.

No cenário nacional ela gostava muito da dupla Leandro e Leonardo, de quem tinha diversos LP's e CD's, incluindo álbuns da carreira solo de Leonardo, após a partida do irmão.

Com o passar dos anos, Detinha e Jurandir Luiz acabaram se afastando um pouco, porque, segundo ele, assim é a vida. A pandemia da Covid-19 contribuiu para aumentar ainda mais a distância entre os amigos.

"Eu não economizei palavras para exprimir o quanto ela sempre foi importante na minha vida, fosse em mensagens de aniversário ou em qualquer outra ocasião. Eu a considerava minha segunda mãe”, confessa o antigo vizinho, certo de que esteja onde estiver, Dona Odete sabe do amor que ele sentia por ela.

Entretanto, gostaria de ter tido a oportunidade de se declarar novamente. "Não sendo possível, me resta prestar esta homenagem à essa mulher que deixou uma bela história de vida e influenciou muitas outras”, finaliza Jurandir Luiz.

Maria nasceu em Maringá (PR) e faleceu em São Bernardo (SP), aos 71 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo amigo de Maria, Jurandir Luiz da Silva Junior. Este tributo foi apurado por Saory Miyakawa Morais, editado por Mariana Quartucci, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 15 de agosto de 2021.