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Marly Sartin

1953 - 2021

O “macarrão amarelinho” preparado por ela, em incontáveis momentos, foi razão de alegria e deleite dos netos.

Ela incorporava o amor em sua forma mais explícita. E foi exatamente por isso que ao longo de sua trajetória foi capaz de fazer escolhas que tiveram como foco e finalidade o bem-estar de sua família. Como filha, esposa, mãe e avó, ela “era sinônimo de cuidado”.

Esta é a história da Marly, uma descendente de italianos, filha de Ângelo e Conceição. Uma existência perpassada por um baú... que existiu bem antes dela, na fuga dos seus avós da Itália como refugiados de guerra. A peça foi herdada por Seu Ângelo e já estava na fazenda em Nerópolis quando Marly e seus nove irmãos nasceram.

À medida que crescia, a menina foi assumindo a responsabilidade de cuidar dos irmãos e da casa. E assim, desde muito nova, aprendeu a cozinhar muito bem. “Qualquer coisa que acontecia com os irmãos era ela quem cuidava”, conta a filha Lara. Dizendo de outra maneira, Zica, apelido carinhoso que tinha em casa e que ninguém sabe explicar a razão, era quem dava banho nos irmãos mais novos e foi a ajudante de primeira hora de Dona Conceição nos cuidados com a casa da fazenda.

Entre os irmãos, Shirley era a mais apegada. Ela e os filhos estiveram bem próximos à família que Marly constituiu com seu amado Paulo. De tanto carinho e cuidados recebidos de Marly e Paulo, Shirley era pura gratidão e os filhos dela passaram a chamar os dois de Madrinha e Padrinho. Por muitos e muitos anos, Marly e Shirley tinham um compromisso diário: conversar por cerca de duas horas, em telefonemas, onde falavam de tudo um pouco.

Marly conheceu Paulo no ambiente de trabalho. Quis o tempo que os bancários se encontrassem em algum setor da instituição na qual trabalhavam. E o que era relacionamento profissional foi ganhando ares de admiração, encanto e amor, culminando num casamento que perdurou por quarenta e três anos. Além de Lara, a mais velha, o casal gerou também Pedro Paulo e João Paulo. No seguimento das teias de afeto produzidas pela vida, chegaram os netos Felipe, Maria Cecília, Maria Fernanda, Pedro Antônio e João Miguel.

A transferência de Paulo para Brasília e a necessidade de cuidados com os filhos Lara e Pedro levaram Marly a abandonar sua carreira no banco. Mesmo tendo conseguido transferência para a capital do país, numa cidade que pouco conhecia, a mãe cuidadosa não encontrou pessoa que lhe transmitisse segurança para cuidar dos seus pequenos, enquanto trabalhava. Por amor, pediu demissão e dedicou-se completamente a cuidar da casa, dos filhos e depois dos netos.

E desde então, Marly foi uma dona de casa extremamente caprichosa. Muito antes da pandemia já era louca por limpeza. Quando Paulo chegava com as compras de supermercado ou da feira, ela lavava hortifrútis antes de colocar na geladeira e fazia o mesmo com as embalagens dos produtos. “Nada ia para dentro do armário antes de ela limpar ou lavar”, conta Lara com um certo sorriso na voz.

Entre as tantas atividades que faziam parte de sua rotina, Marly sempre encontrou tempo para cuidar de afetos e memórias. Com letra cursiva e em folhas pautadas, por um longo período, escreveu uma espécie de diário de cada um dos filhos. Na busca de registrar o olhar de cada um deles, narrava fatos em primeira pessoa. Do nascimento, passando pela primeira mamada... até a chegada à universidade, Marly guardou pesos e alturas, sábados e domingos, viagens e passeios, visitas e festas de aniversário. No transcurso dos dias, o que foi escrito ganhou ares de tempo no amarelo das folhas e alguns borrões na tinta azul que marca o papel.

Quando o neto Felipe nasceu, no ano de 2010, Lara já conheceu o álcool em gel. “Ah, como era cuidadosa” recorda agradecida a filha. Marly passou quatro meses na casa dela deixando tudo limpo e bem cuidado. Terminada a licença maternidade da filha, a avó passou a cuidar de Felipe enquanto Lara trabalhava. A mesma coisa aconteceu em relação aos filhos de Pedro Paulo e João Paulo, que receberam todos os cuidados e mimos da carinhosa vovó.

Entre as delicadezas dessa convivência amorosa com os netos está o “macarrão amarelinho”. Era assim que os netos se referiam ao macarrão caseiro feito com o cilindro que Marly usava para abrir e cortar a massa. Para temperar e colorir, ela usava açafrão. Depois de seco e cozido em água fervente, o macarrão, em incontáveis momentos, era razão de alegria e deleite da garotada.

Lembra do tal baú que os pais de Seu Ângelo trouxeram da Itália? Não é que ele foi herdado por Marly e passou a ser peça importante em sua vida de casada? É que ela gostava de guardar lembranças. Dentro do baú, foi colocando o canivete do Seu Ângelo, peças do enxoval, dentinhos dos filhos e netos, a sapatilha de balé de Lara, macacões do tempo em que Pedro e João corriam de kart, roupas significativas de sobrinhos, objetos religiosos que ganhava... Entre eles estavam sua Bíblia e as imagens impressas dos santos dos quais era devota.

Por excesso de zelo com os outros, Marly acabou por não ser nada vaidosa. Lara conta que em muitos momentos ela "brigava" com a mãe para que fosse se arrumar. “Ela comprava coisas lindas... pra gente, mas não se preocupava consigo mesma. Muitas vezes eu precisava dizer a ela para ir fazer as sobrancelhas, comprar uma roupa nova, pintar o cabelo”, explica Lara.

Da mãe, Marly herdou a religiosidade e a fé católica. Devota de Nossa Senhora em suas várias representações e nomes, uma de suas romarias prediletas era a visita ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, no estado de São Paulo. Com frequência também ia rezar no Santuário do Pai Eterno, localizado na cidade goiana de Trindade. Na televisão, assistia diariamente ao canal católico da Rede Vida. Como participante do grupo do Apostolado da Oração, o terço era uma de suas rezas prediletas. Vez por outra, ganhava terços de presente, "que eu contei, trinta e sete”, diz Lara.

A fé em Maria era tanta que Marly participava ativamente do Apostolado da Oração do Movimento Mariano da paróquia que frequentava. Recorrentemente dizia “não tem nada nesse mundo que eu peça para Nossa Senhora que ela não faça para mim”. Muitas vezes fazia promessas para que ela e outras pessoas pagassem. Entre as muitas memórias de Lara, uma das mais preciosas é dos momentos em que ficava deitada no colo de Marly, que lhe acariciava os cabelos enquanto pedia que olhasse fixamente a imagem de Nossa Senhora. Um momento que misturava afeto e oração e contribuiu fortemente para que a mãe fosse também uma amiga de Lara.

Para que se tenha uma ideia da intensidade da relação entre as duas, nada melhor que as próprias palavras de Lara. “A mãe foi a minha melhor amiga e não tinha nada da minha vida que ela não soubesse. Até o que eu fazia de errado na adolescência eu contava pra ela. A única vez que eu fiquei sem falar com ela foi quando ela foi para a UTI. Mesmo quando eu morei fora durante sete anos, para fazer faculdade em Uberlândia, nós nos falávamos todos os dias”.

Movida por essa necessidade de conversar com a mãe e sabendo da falta que Marly sentia das conversas com a ela e outras pessoas da família, Lara viabilizou um acontecimento capaz de parar a Unidade de Terapia Intensiva onde a mãe esteve internada. Com autorização e apoio da equipe médica, a filha enviava regularmente áudios para que Marly escutasse. Houve uma coletânea diversa gravada por Paulo, filhos, netos, alguns irmãos, amigos, pastor e padre. Na evolução dos acontecimentos, as mensagens levavam declarações de amor e desejos de melhoras; um pedido de que voltasse logo e preparasse “macarrão amarelinho”; orações do pastor e a unção dos enfermos do padre.

Neste final da história, voltemos ao baú de madeira herdado por Marly, que segue atravessando o tempo. Com pezinhos colocados por ela para que a arca não ficasse rente ao chão, cuidadosamente envernizado e com as trancas de costume, o móvel segue guardado e cuidado pela filha Lara. Virou uma espécie de oratório da memória de Marly. Dentro dele, as lembranças que Marly guardava e mais alguns objetos colocados por Lara. É que, conforme o espírito com o qual Marly viveu, a maioria dos seus pertences foi doada a pessoas necessitadas. Sobre a tampa, uma imagem de Nossa Senhora e de outros santos da devoção dela, ladeados pela Bíblia e por flores do campo.

Marly, que na juventude gostava de dançar e que ao longo da vida apreciava a música Iolanda, do compositor Chico Buarque, segue viva no baú-oratório inventado por Lara, onde, em seus objetos, guarda sonhos, cuidados, despedidas e a amorosidade com que sempre viveu. Marly segue viva na memória amorosa de Paulo, que somente conseguiu permanecer morando na mesma casa com a companhia da filha Lara e de sua família.

Marly nasceu em Nerópolis (GO) e faleceu em Anápolis (GO), aos 67 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Marly, Lara Sartin. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 25 de agosto de 2023.