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Martinho Lutero Galati de Oliveira

1953 - 2020

“O canto coral nos aproxima e nos leva a comportamento e práticas menos egoístas.”, dizia ele.

"Maestro, compositor e professor. Reconhecido como um dos principais regentes de coros do Brasil, destaca-se por ter contribuído para a valorização de culturas não hegemônicas na música coral. É regente fundador do Coro Luther King em São Paulo - Brasil, e do Coro Cantosospeso de Milão - Itália, conhecidos pela qualidade técnica na execução do canto conjunto e pela variedade de repertório executado, do erudito ao popular, da música antiga à música contemporânea. Com esses grupos, ao longo de 5 décadas, realiza projetos de intercâmbio cultural e humano em turnês pela América Latina, Europa, África e Ásia.

Lutero chega a São Paulo em 1960, onde completa a educação básica e sua formação em música, iniciada na infância. Tem aulas com os maestros como Jonas Christensen (1943-1992), Hans Joachim Koellheutter (1915-2005) e Eleazar de Carvalho (1912-1996). Durante a adolescência, em uma carreira precoce, assume o Coro da Juventude Musical de São Paulo, dirige musicalmente a peça teatral Hair (1969) e rege concertos no Teatro Municipal.

Aos 16 anos (1970), em meio à efervescência cultural pós “68” e sob a censura dos “anos duros” do período de ditadura no Brasil, cria em São Paulo o Coro Luther King. Para formá-lo, reúne pessoas de diferentes classes sociais e religiões, com o objetivo de expressar o canto em seu sentido mais amplo e abrangente. Desde o princípio, as apresentações do grupo evidenciam a cultura brasileira e a de povos que contribuíram para a formação do país. A música clássica europeia, base de seus estudos e objeto de pesquisa, também se destaca em seu currículo e, primeiras audições de obras eruditas até então desconhecidas aqui, entram para a história do Coro Luther King como, por exemplo, a Ópera “Dido and Aeneas” de Henry Purcell.

Com as propostas do regente, o grupo também se tornaria o primeiro coral a realizar concertos de spiritual, gênero musical de origem afro-americana. Influenciadas pela cultura protestante, as execuções remetem à música de escravos negros e fazem referência ao sentimento do oprimido em sua expectativa de obter a salvação. O repertório e a sonoridade das apresentações regidas pelo músico, com elementos da cultura popular brasileira e da cultura afro-americana, marcaram toda uma década e influenciaram diversos corais no Brasil.

Depois de passar uma temporada em Buenos Aires, onde complementa seus estudos de regência orquestral no Conservatório Torquato di Tella, Lutero volta para São Paulo, dirige e coordena orquestras, concertos e setores de música coral de diversas instituições.
Sua experiência como regente e o interesse em valorizar culturas esquecidas e massacradas levam-no a viver na África de 1978 a 1984. Lá, a serviço da UNESCO, realiza pesquisas sobre música tradicional. No último ano de sua estada no continente, funda com um grupo de intelectuais, alunos universitários e jornalistas a Associação Cultural Tchova Xita Dima, em Maputo, Moçambique. O objetivo da entidade é promover a arte na área da música e do teatro, com uma abordagem cênica e radiofônica. Também em Moçambique funda a Escola Nacional de Música, na qual ensina regência e composição, produz a primeira série de programas de música tradicional africana na Rádio de Moçambique e publica o Cancioneiro Infantil Moçambicano.

A partir de 1985, aprofunda seus estudos de música na Europa, onde convive com importantes maestros e compositores, como o italiano Luigi Nono (1924-1990), de quem “herda” um legado e em sua homenagem funda em Milão a Associação Cantosospeso, cujo objetivo é difundir a prática coral como exercício de convivência e como oportunidade de aproximar as pessoas da música contemporânea e, sobretudo, da música de povos e culturas historicamente ofuscados pelo colonialismo cultural.

Os estudos e as criações de Lutero, no Brasil e no exterior, consolidam os traços essenciais de sua produção artística, com grande destaque para a valorização do canto de culturas fragilizadas pelos processos de colonização.
Personalidade marcante, alma irrequieta, mente brilhante, comprometido com a luta pela Paz, pelos Direitos Humanos e pela valorização da identidade cultural dos homens.

Essas características se evidenciam nos concertos regidos pelo maestro ao redor do mundo, que recuperam desde músicas dos índios da Amazônia até longínquos sons e ritmos de aldeias africanas, e influenciam profundamente sua leitura e sua interpretação da música clássica européia, tanto vocal quanto instrumental.
Em 2012, à frente do Coro Luther King, recebe o prêmio de melhor conjunto coral, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

De 2013 a 2016, Lutero atua como diretor artístico do Coral Paulistano Mário de Andrade e, ligado à estrutura do Theatro Municipal de São Paulo, realiza a primeira execução integral das Missas de W. A. Mozart nas Américas. Cria e organiza a primeira “Virada Coral” de São Paulo integrada à Virada Cultural, realizando nesta edição 150 concertos em 48 horas ininterruptas. Participam 102 agrupamentos corais. Cria e dirige o projeto de difusão da música coral na cidade intitulado "CANTA São Paulo" ligado à rede de ensino público. Cria e dirige o projeto "SP Cidade Coral" envolvendo os coros já constituídos na cidade. Em 2018 torna-se presidente da Associação Brasileira de Regentes de Coros. Ao longo da carreira, recebe diversas homenagens, como o título de Cidadão Paulistano, proposto pela Câmara Municipal de São Paulo, o de Cidadão Honorário de Moçambique e de Milão e a Comenda Papal da Ordem de São Luiz Nono do Estado do Vaticano.
Em 2019 cria a primeira orquestra brasileira especializada em acompanhamento de música coral - a Camerata Sé - e com ela realiza dezenas de concertos de música clássica brasileira e internacional no coração da cidade de São Paulo.

Idealizador do “Fórum Coral Mundial” ligado ao Fórum Social Mundial, acredita que “um outro mundo é possível”. Acredita também que “um outro canto é possível”.

O Maestro Martinho Lutero Galati promoveu a pesquisa, a difusão e a execução da literatura coral mundial em seus projetos ao longo de sua vida. Conduziu seus grupos corais e conjuntos orquestrais sempre conectado com seu tempo, numa atitude crítica e política. Suas ações aproximaram milhares de pessoas através da música em diversos países, contribuindo para o estímulo à pesquisa e à difusão do ensino musical, ao desenvolvimento e à valorização da performance artística de grupos corais e à criação de estruturas independentes na manutenção do encontro de linguagens artísticas e da preservação da cultura musical dos povos."

Martinho nasceu em Alpercata (MG) e faleceu em São Paulo (SP), aos 66 anos, vítima do novo coronavírus.

História revisada por Rayane Urani, a partir do testemunho enviado por esposa Sira Milani, em 16 de julho de 2020.