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Merquides Rondina

1936 - 2020

Vestia terno e gravata para cuidar dos carros na oficina, trabalho que tanto gostava.

Merquides é um nome bastante diferente do que se costuma ouvir por aí, mas era exatamente disso que ele se orgulhava: era único. Nasceu no interior de São Paulo e cresceu em meio a sete irmãos. Trabalhou desde os 11 anos para poder ajudar com os gastos da casa. Ali era um entra e sai constante, cada um com sua rotina e seus compromissos. O pai gerenciava seu salário e o ajudou a desenvolver uma boa educação financeira para a vida adulta.

Nos momentos de trabalho, era extremamente responsável. Considerava-o seu grande dever, e qualquer compromisso podia ser remarcado se o motivo fosse uma obrigação profissional. Por muitos anos, foi mecânico numa oficina. Mas não ia vestido de qualquer jeito não, zelava para que estivesse sempre bem apresentado. Passava parafina nas unhas para que não manchassem de graxa, e cuidava com carinho dos sapatos para que não perdessem o brilho nas viagens de bonde. Dá pra imaginar o tamanho de seu capricho.

Aos 19 anos, casou-se com a mulher que seria sua esposa por cinquenta e cinco, tempo de muito cuidado mútuo. Juntos, se divertiam nos programas de pescaria, que eram os favoritos de Merquides. Ele se alegrava quando conseguia pegar um peixe bem grande, e abria o sorrisão para registrar numa fotografia.

Gostava também de jogar baralho e de fazer uma bela caipirinha, digna de premiação. E outra coisa que o animava era assistir ao futebol do seu time, o Palmeiras. E não deixava de torcer para outro time se o jogo fosse contra seu principal rival.

Merquides era apaixonadopor carros. Gostava de falar sobre o assunto, acompanhava quem fosse procurar um veículo novo, e ensinou orgulhoso as filhas a dirigir. Sua filha Marta lembra que, quando pequena, ele buzinava em sua caminhonete quando chegava em casa, para que pudessem dar uma volta juntos, com ela aprendendo a trocar as marchas. Antes mesmo de as filhas fazerem 18 anos, o carro já estava guardado na garagem e, assim que tiravam a habilitação, ele as colocava para dirigir até na estrada, durante as viagens. Com esse incentivo todo, o medo era até amenizado.

Merquides foi pai e marido cuidadoso e presente. O gênio forte era compensado pela dedicação de nunca deixar ninguém na mão. Vivia pela sua família. Mesmo contrariado, fazia o que precisasse para ajudar e estar por perto. Depois de alguns anos, criou com sua filha o hábito de tomarem café juntos todo domingo, quando ele relembrava momentos da infância. Como sabia que ela gostava de salame, chegava em sua casa antes mesmo de ela acordar, já com o pão e o salame de sempre. Esse era só um exemplo de sua atenção.

Sua realização era saber que a família estava bem. Era brincalhão e tinha muita sabedoria, que adquiriu com a vida. Era honesto e muito verdadeiro - quando algo não lhe agradava era difícil disfarçar.
Um de seus principais ensinamentos foi a responsabilidade com o trabalho e com a família. “Ah, e a loucura dele era saber que alguém estava com o nome sujo na praça. Ele consultava sempre o meu nome e o nome do meu marido. Tinha fixação com isso, era até engraçado”, lembra, alegre, Marta. Ensinou seus filhos a se inspirarem na coisa certa a se fazer, usando a clássica frase: “todo mundo faz, mas você não é todo mundo”.

Sempre foi bem independente e valorizava muito essa característica. Custava a ele deixar que cuidassem de si ou de sua casa. Era também muito vaidoso. Pintava o cabelo e usava camisa azul para combinar com a cor de seus olhos.

Foi uma pessoa feliz que merece ser honrada e lembrada com tantas histórias, sorrisos e ensinamentos que proporcionou.

Merquides nasceu em Nova Granada (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 83 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Merquides, Marta Valéria Rondina Bonafe. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Gabriela Pacheco Lemos dos Santos, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Rayane Urani em 29 de julho de 2021.