Sobre o Inumeráveis

Miguel Armando

1952 - 2020

Deixou um caderninho com seus números do jogo do bicho, sua paixão.

Ele era o mais novo de cinco irmãos e o único filho homem. Estudou até a quarta série e começou a trabalhar cedo, primeiro como colocador de pisos e depois como vendedor. De dia ele trabalhava na empresa onde era contratado e à noite fazia o mesmo, mas em sua casa. Ele trabalhou nessa jornada dupla de vendedor de carpetes e laminados por dez anos até conseguir montar uma loja com um amigo e começar seu próprio negócio.

Miguel foi casado e teve dois filhos, um menino e uma menina. Conheceu a mãe deles como nos filmes antigos: numa troca de olhares em um ponto de ônibus. Por ser próximo à casa dos dois, o local facilitou que esse encontro logo virasse namoro. Eles foram parceiros até no trabalho. Casados, permaneceram juntos durante algum tempo e um dia se separaram. O divórcio fez com que Miguel se afastasse um pouco dos filhos, que ficaram sob os cuidados da mãe e dos avós maternos.

Tempos depois, em 2006, Miguel se reaproximou da família e reestabeleceu os vínculos por meio dos cafés da manhã de domingo. Nessas manhãs, trazia sempre consigo o pão francês — que a neta chama de "pão do Vovô Miguel". Com o passar dos anos esses cafés estenderam-se para as tardes e foram pretexto para filmes e almoços. Um lazer que se tornou quase um compromisso de calendário, pois todos os domingos de 2006 a 2020 foram para reunir a família.

Ele mandava muitas mensagens para o filho Michel; no máximo a cada dois dias ele ligava ou mandava um áudio dizendo "E aí, esqueceu que tem pai?", sempre em tom de brincadeira. E quando não era ele, era o filho que o procurava: "E aí, esqueceu que tem filho?" Nunca exigiu que os filhos fizessem faculdade, mas a felicidade foi enorme quando ingressaram em um curso superior. Onde ele gostava mesmo de opinar era no trabalho dos filhos: gostava de vê-los progredindo financeiramente.

A vinda da neta Julia foi como um presente. Ele sempre quis ser avô de uma menina. Recebeu a notícia por telefone e ficou muito surpreso. A história do nascimento da neta foi como a da chegada de seu próprio filho: com a data do casamento já marcada, de repente descobre-se que tem um bebê à caminho. Depois que a menina nasceu, ia à casa do filho até em dias de semana e juntos buscavam Júlia na escola. A parceria entre ele e a neta passava pelos tons da maquiagem e chegava até as cores da tinta guache. Pintavam muito quando estavam juntos e ela dizia que o avô era o melhor nas pinturas.

Miguel gostava muito do Roberto Carlos. Foi a um show do cantor, na companhia do filho, e ainda que estivessem distantes do palco, ele amou. Não era apenas fã do Roberto e de suas músicas, tinha também o cabelo parecido, assim mais comprido; que deixava aos caprichos da neta: ela podia amarrar, pentear e despentear. Também a deixava pintar as unhas, passar batom... fazia no avô a maquiagem completa. Aproveitavam o tempo juntos.

Depois da chegada de Júlia, sua presença era ainda mais frequente. Às quartas-feiras eles se reuniam para almoçar — o almoço dos meninos — e passavam a tarde juntos. As conversas, os conselhos, as trocas eram nesse dia; o mesmo em que buscavam a neta na escola. Preferia comer fora e amava comida simples: arroz, feijão clarinho e bife. Também gostava de feijoada, sem muita coisa; além do clássico pão com manteiga. Ele comia em qualquer lugar. Às vezes parava num barzinho para comer um picadinho. Uma vez, em um restaurante famoso, quando a costela chegou, ele indagou "Cadê o feijão? Não tem feijão?"

Miguel sempre acreditou em seu próprio sucesso e fez o mesmo pelo filho. Foi o primeiro a investir na empresa dele quando ficou sabendo da ideia. Através de uma ligação, disse "Meu, se você acredita na sua ideia tem que fazer acontecer". A frase de incentivo foi inspiração e virou tributo no corpo do filho por meio de uma tatuagem: "acreditar faz parte do caminho".

Além de ser o caçula, Miguel era o único varão entre as irmãs. Uma delas, Elizabeth, apresentava um transtorno mental e ficava sob os cuidados da mãe. Zelosa, ela lhe pediu que, quando partisse, ele não internasse a garota. Atendendo ao pedido, Miguel cuidou da irmã até o último dia dela, que faleceu em 2019.

Miguel deixou uma herança curiosa. Ele jogava no bicho e deixou um caderninho com várias folhas com muitos números do jogo. Toda quarta-feira e sábado ele jogava e uma vez a cada dois meses ganhava alguma coisa. Também gostava muito de bingo e ganhava bastante. "Bingueiro", apostador no bicho e... torcedor do Palmeiras! Torcedor mesmo, daqueles que não perdia um jogo. Esse era o Seu Miguel.

Miguel nasceu São Paulo (SP) e faleceu São Paulo (SP), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo filho de Miguel, Michel Eduardo Martinez Armando. Este tributo foi apurado por Claiane Lamperth, editado por Raphaela Medeiros Costa, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 1 de setembro de 2021.