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Miguel Cavalcante Sousa

1943 - 2020

Era muito bom em matemática, num instante fazia qualquer cálculo de cabeça.

Torcedor fanático do Clube do Remo, Miguel não desgrudava da TV nas tardes de domingo e nas noites de quarta caso o Leão do Norte estivesse em campo. Poderia estar caindo o mundo, mas a TV era só dele nessas ocasiões. Talvez como uma maneira de persuadir os demais, sempre dizia que aquele poderia ser o último dos jogos que iria assistir e, assim, ninguém ousava tocar no aparelho enquanto não fosse ouvido o apito final do juiz.

Mas esses eram os únicos momentos em que ele nem dava confiança a nada e nem a ninguém. No mais, seu Miguel amava conversar e contar histórias vividas durante a juventude na interiorana Abaetetuba. Lá, segundo ele, era necessário enrolar as barras das calças até a altura das canelas para que pudesse chegar às festas onde se divertiria até ficar com a camisa encharcada de suor de tanto dançar. Apesar de seu perfume na época ter duração de apenas meia hora, o pé de valsa tinha prática e habilidade e chegava alinhado e ainda muito cheiroso no arrasta-pé, antes mesmo do perfume acabar. O apelido "Pavão" não foi dado por acaso, Miguel era vaidoso.

Ele se divertia colocando apelidos engraçados nos namorados da filha e fazendo chacotas para atormentá-la. "Ele tinha a mania de falar que a minha mãe era a Cláudia Raia e sabia que desde pequena eu me irritava com isso. Então, era só a Cláudia Raia aparecer na telinha que ele gritava: 'Melllll, vem ver a tua mãe aqui na televisão!' E caía na gargalhada, pois sabia que eu estava 'pistola' com a brincadeira", relembra a filha Mel que aprendeu, com o tempo, a dar incentivo para as zombarias do pai.

A filha conta que para ele era sagrado um cafezinho por volta das 4h da tarde, "fizesse chuva ou sol, ele tinha que tomar o café dele, mesmo que estivéssemos em pleno verão de Belém do Pará". Se passasse das 16h40 e o café ainda não tivesse saído, ele dizia para a filha: "Bate aí na janela da vizinha e pede uma xícara de café".

Aos finais de tarde, Miguel gostava de se sentar na porta de casa para acompanhar o movimento, mas entrava tão logo caía a noite, pois sabia que o sereno não fazia bem para a sua saúde já um pouco debilitada.

"Nós fazíamos tudo juntos, íamos ao supermercado, pagar as contas, eu o acompanhava nas consultas, ao banco... Quando tínhamos alguns problemas para resolver, eu já sabia: era eu e ele. No hospital, onde se consultava, já tinham até me dando o apelido carinhoso de 'pit bull'", relembra de maneira divertida a filha e complementa: "ele me chamava carinhosamente de 'cara de broa', o apelido pegou e até hoje sou chamada assim".

Agora imagine um "cabra" trabalhador. Imaginou? Pois bem, Miguel era desses. Passou a vida trabalhando embaixo de chuva e de sol, não havia tempo ruim para ele. Foi feirante camaroneiro no bairro do Jurunas por mais de quatro décadas e chegou a ser conhecido como o "Rei do Camarão". Era "brabo" e cabeça-dura, tudo tinha que ser do jeito dele, mas a filha conta que sempre teve e terá muito orgulho do pai que "ensinou que o trabalho edifica o homem". Quando sofreu um infarto em 2013, foi proibido pelo médico de trabalhar e de fazer esforço físico. Teria que se limitar a carregar no máximo 5 quilos. "Nossa! Aquilo foi angustiante para ele. Um homem que trabalhou a vida toda ter que parar e ficar só em casa... Pra ele foi horrível! Mesmo assim ele não parava, quem disse que ficava quieto? Ficava nada! Era uma bênção. O que podia aprontar, estava aprontando", revela a filha.

"Enfim, foram vinte e sete anos de muitas histórias ao lado de meu pai. Foram anos maravilhosos e costumo dizer que ele foi e é o grande homem da minha vida. O amor que sinto por ele, nem eu sei explicar. É algo surreal sabe? Meu pai ensinou princípios e mostrou o que era certo e o que era errado. Sinto imensa falta dele, ficou um buraco tão grande! Mas entendo que nos últimos dias de vida ele conversava direto com Deus, como se soubesse o que iria acontecer... Então, papai entregava a vida dele todos os dias para Deus e creio que ele está na Glória!", conclui a filha Mel com gratidão e muito amor.

Miguel nasceu em Abaetetuba (PA) e faleceu em Belém (PA), aos 77 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Miguel, Mel Rodrigues Sousa. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Renata Nascimento Montanari e moderado por Rayane Urani em 18 de março de 2021.