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Miguel José Machado Neto

1965 - 2021

Cultivava duas paixões: pilotar motos e exercer a profissão de farmacêutico. Sem ordem de preferência.

Membro de um grupo de motociclistas, Miguel estava sempre na estrada, lugar que considerava como uma segunda casa. Por este motivo, suas cinzas foram lançadas na Serra do Rio do Rastro, localizada ao sul do Estado de Santa Catarina, seu lugar favorito.

A paixão por pilotar motos dialogava com seu jeito de viver intensamente e aproveitar cada instante. Mas ele também fazia planos, tinha sonhos e se sentia muito feliz na fase de vida em que estava.

Em relação ao trabalho que realizava, como farmacêutico, a inspiração vinha da chance de ajudar o próximo, segundo Victoria Beatriz, a enteada. Pois Miguel era bondoso, solidário e amoroso, e tais atributos se estendiam para a comunidade. "Ele foi uma das pessoas mais bondosas que já tive a oportunidade de conhecer, possuía um coração maior que ele. Era surreal a forma como ajudava todo mundo; fazia parte de campanhas solidárias, como o pedágio para arrecadação de doações”, relata a enteada, que se diz inspirada pela bondade e pelo esforço do padrasto.

Além do hobby de pilotar a motocicleta, no seu tempo livre, o farmacêutico gostava de fazer churrasco em família e estar na companhia de quem amava. Os almoços em geral aconteciam aos domingos e em datas comemorativas. Exagerado por natureza, esses encontros costumavam ser fartos, ao ponto de ter sobra de comida para o restante da semana. Naturalmente esquecido, ia e voltava do mercado para cumprir toda a lista de ingredientes. A memória de Victoria Beatriz guarda momentos calorosos, repletos de risadas, alguns estresses — o que ela considera normal — e muito, mas muito churrasco. "Lembro da muvuca, e ele lá, na maior tranquilidade assando a carne, mesmo que fosse três da tarde", ela retrata, certa de que estes eram os melhores dias do mês e o padrasto o melhor chefe de churrasco que já conheceu. Porém, reconhece que ele possuía um repertório de piadas bem sem graça. Nas reuniões, o motociclista aproveitava para contar piadas e as mesmas histórias de viagens, das quais sempre ria.

A relação entre enteada e padrasto em todo o tempo foi ótima, permeada de risos e conversas, principalmente sobre motociclismo e o trabalho dele. Ela podia contar com o apoio de Miguel para qualquer coisa, até para as quais ele não aprovava. E se brigaram duas vezes foi muito!

A história do casal começou com amizade e, aos poucos, se tornou uma relação amorosa. Então Miguel e a mãe de Victoria Beatriz resolveram morar juntos. Eles faziam um bem enorme um ao outro, se ajudavam em momentos verdadeiramente difíceis e, apesar de alguns desajustes causados por ciúmes, que resultavam em rompimento num dia e reconciliação no outro, construíram uma união de companheirismo.

É dele o mérito por imprimir um novo sentido às festividades na vida de mãe e filha. “O Natal de 2020 foi, sem dúvida, o primeiro em que ela não chorou e que realmente estava bem, por causa dele”, avalia a enteada, que também possui uma lembrança especial com o padrasto incluindo celebrações. Por sentir saudade do pai, ela ficava triste no seu aniversário. Mas, em 2021, quando completou 18 anos, a data ficou marcada pela surpresa que Miguel preparou: um texto lindo, cheio de amor, acompanhado de um carrinho de brinquedo. “Pois eu insisti muito que queria ganhar um carro”.

No dia em que se conheceram, Victoria conta que a conexão com o padrasto foi instantânea. Naquela oportunidade, Miguel pediu um lanche para saborearem em família e, assim, em pouco tempo estavam todos à vontade na companhia uns dos outros. “Ele me deixava segura e sempre confortável. Depois que meu pai faleceu, ele foi uma das pessoas que mais amei e em quem mais confiei; fez de tudo por nós e pelos filhos dele". O farmacêutico era do tipo que chegava em casa com alguma surpresa, só para agradar.

Muito amado por familiares e amigos, ele é lembrado como um homem de inúmeras qualidades: brincalhão, alegre, trabalhador, sorridente, acolhedor, carinhoso — ao ponto de enviar mensagem de bom dia toda manhã para as pessoas próximas, e no aniversário delas ser o primeiro a dar os parabéns. No grupo de motociclistas, oferecia teto para os membros que vinham de fora. Por este motivo, possuía amigos de todo o Brasil, e da vizinha Argentina.

Uma mania, em particular, revelada por Victoria Beatriz, refere-se às buzinadas de Miguel ao passar em frente à casa dos amigos, ainda que não tivesse ninguém do lado de fora. Obviamente virou sua marca registrada. Outra recordação está relacionada ao figurino dele, composto por notáveis anéis de caveira e um colete. Embora pouco afeito à vaidade, mantinha por hábito os adornos em todos os dedos, além do cheirinho perfumado.

Do mesmo modo, qualquer rock animado remete ao padrasto, que frequentava shows e ficava totalmente extasiado na ocasião. Conforme a enteada, ele gostava de ouvir música no carro e, mesmo no ambiente de trabalho, mantinha o som no volume baixinho. “Minha mãe era a única que curtia as mesmas músicas; de qualquer maneira, ele criou um sistema de revezamento no carro, então cada um ouvia uma que gostava”, conta Victoria Beatriz.

Para finalizar, a jovem retrata outra história que guarda com carinho: a primeira vez que foi acampar em família. “Ele fez de tudo para ser uma das melhores experiências da minha vida, desde montar a barraca, até acordar num colchão furado”, lembra-se ela, sentindo, ao narrar, a sensação de euforia que experimentou naquela viagem, de tão divertida, especial e mágica que foi.

Miguel nasceu em Xanxerê (SC) e faleceu em Balneário Camboriú (SC), aos 55 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela enteada de Miguel, Victoria Beatriz Deluqui da Conceição. Este tributo foi apurado por Giovana da Silva Menas Mühl, editado por Mariana Quartucci, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 21 de agosto de 2021.