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Milton de Oliveira Nascimento

1953 - 2020

O tempero forte nas feijoadas e caldos de mocotó, bem como o delicioso bolo de aipim, eram algumas de suas marcas.

Um pai de santo umbandista e caridoso que trazia em si o sincretismo inerente à sua crença. Levava alegria por onde passava.

A primeira viagem de Milton aconteceu quando ele nem tinha nascido. Transcorreu na barriga da mãe, Dona Ivone, que gestava o terceiro filho gerado com Seu Júlio Nascimento. No calor do ventre materno, o menino compartilhou das esperanças de sua mãe de que, no final da viagem, houvesse tempos melhores.

O nome Milton foi escolhido por duas razões. A primeira é que na família de Dona Ivone e Seu Júlio os nomes dos 11 filhos começam com a letra “M”. O segundo é que o pai decidiu prestar uma homenagem. A admiração pelo grande amigo também chamado Milton fez com que decidisse batizar o menino com o mesmo nome.

Na infância pobre, Milton ajudava os pais a cuidar dos irmãos e começava sua trajetória pelos morros cariocas, tendo morado em Coelho Neto, Madureira, Morro da Lagartixa, Morro da Aurora, Morro do Éden e depois no Morro da Pavuna.

Profissionalmente, ele começou a trabalhar bem cedo, ainda na juventude, também para colaborar no orçamento doméstico. Seu afazer era o trabalho numa fábrica de tecidos, atividade mantida durante anos. Foi também funcionário de uma fábrica de vulcanização de plásticos. Bem mais tarde, abriu uma loja de produtos religiosos e utilidades domésticas, na qual trabalhou até que chegasse a aposentadoria.

Mas foi na religiosidade que Milton encontrou seu principal caminho nessa vida. Ele chegou a frequentar cultos evangélicos juntamente com o avô que, crente em uma das correntes evangélicas, levava o neto consigo para os momentos de oração. Contudo, dentro de Milton, como uma missão, brotava cada vez mais forte o chamado da Umbanda.

O sincretismo inerente à Umbanda representava o modo eclético de ser de Milton. Na mistura do Cristianismo com elementos de religiões africanas e indígenas, falou mais forte a cor da pele negra de Milton e a história de seus ancestrais africanos, que precisaram inventar um modo de realizar suas manifestações religiosas escapando da repressão da sociedade colonial portuguesa.

Antes de conseguir abrir seu próprio centro na Pavuna, comunidade de um dos morros cariocas, Milton foi aos poucos se aproximando do lugar de pai de santo. Como o próprio nome diz, na Umbanda uma figura associada à figura paterna que cuida das pessoas que frequentam os rituais e eventos realizados no centro. Importante dizer que em diversos momentos Milton dizia que encarava o lugar de babalorixá como uma missão que nunca calou dentro de seu peito. Assim, sua disposição em ajudar as pessoas com quem convivia, por meio da religião e de ações de caridade organizadas por ele, era uma constante.

Médium, durante os rituais ele incorporava diversas entidades tais como Santos de Rua, Tranca Rua, Preto Velho, Malandro, Dona Sete. Por meio deles prestava ajuda espiritual aos frequentadores do centro.

O espaço sagrado fundado por Milton absorvia bastante sua rotina. Em alguns momentos ele optava por se ausentar de festas de família e outros compromissos em função de responsabilidades como pai de santo. A esposa Rolange, também simpatizante da Umbanda, em alguns momentos alertava o marido para a necessidade de equilibrar bem as atividades no centro e cuidar da vida pessoal. Respeitoso, Milton nunca impôs sua crença aos filhos Milton e Amanda. Sempre dizia a eles que não queria que nenhum dos dois seguisse a Umbanda por obrigação e que a prática religiosa era uma missão pessoal dele.

A alegria negra de Milton o acompanhou durante toda a vida. O carioca de nascimento não dispensava uma cerveja gelada numa roda de samba ou de pagode. O filho, também chamado Milton, com um sorriso no rosto, conta que “o pai sambava bem demais. Tinha horas que dava até um pouco de vergonha de sambar perto dele de tão bem que ele sambava". O samba no pé o levava também para eventos nas quadras das escolas de samba Grande Rio e Imperatriz Leopoldinense. Ele frequentava regularmente ensaios das escolas e outros eventos, tais como feijoadas e festas de São Jorge quando aconteciam em uma das quadras das agremiações carnavalescas.

Apesar de morar na Cidade Maravilhosa, Milton não gostava muito de frequentar as praias. Ele gostava mesmo era de tomar banhos de cachoeira. Momentos marcados pelo lazer e também pela religiosidade.

Na cozinha, os sabores preparados por Milton estavam sempre presentes. Fazia um bolo de aipim como ninguém. O tempero forte era uma de suas marcas nas feijoadas e caldos de mocotó.

Ainda no campo do lazer, era muito comum encontrar Milton e amigos na Feira da Pavuna. No local é possível comprar de tudo e ele aproveitava as idas às compras — de temperos, frango, carne de porco e outros ingredientes para suas feijoadas e caldos de mocotó — para saborear aquela cerveja bem gelada. Entre as companhias mais frequentes estava a filha de santo dele, Eloá. Os dois pareciam dois irmãos, brigavam como se fossem irmãos. O filho Milton conta que na linguagem da Umbanda os dois eram “cópia garrafa” um do outro.

Um pouco antes do início da pandemia de Covid-19, Milton iniciou um processo de redução das atividades no centro. Provavelmente avisado pela espiritualidade, ele passou a ter comportamentos que normalmente não faziam parte de sua maneira de ser.

Um exemplo, foi uma viagem durante o carnaval com a família para a Praia da Joana, no município fluminense de Rio das Ostras. Na areia clara, Milton e a filha Alane dançaram juntos. Numa coreografia animada, e num compasso ritmado, um sorria dos passos inventados pelo outro. Num dos dias, virou a noite acompanhando o filho Milton atrás de blocos carnavalescos. Na passagem dos seus 37 anos, fez questão de organizar um churrasco para celebrar a data juntamente com familiares e amigos.

Milton gostava de morar na Pavuna. Em uma das casas onde morou com a família, o campinho de futebol era paisagem constante. E nos dias de jogos, palco de muita alegria da garotada da comunidade. Se não fosse por alguns conflitos que de vez em quando aconteciam na comunidade, ele jamais pensaria em deixar o morro. Contudo, um dos sonhos dele depois da aposentadoria era conseguir comprar uma casa na região dos Lagos do estado do Rio.

Milton segue vivo, na boa energia que habita o centro fundado por ele. Nas celebrações afro-brasileiras nos centros de Umbanda pelo Brasil afora. Nas memórias carinhosas de todos da família e amigos que tiveram o privilégio de conviver com esse pai de todos. Na lembrança dos conselhos que ele sempre dava ao dizer “Sou espírito livre. Viva cada dia como se fosse seu último dia. Seja grato e feliz pois a vida é feita do que fazemos de bom".

Milton nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 67 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho de Milton, Milton de Oliveira Nascimento Junior. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 27 de abril de 2022.