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Nancy Farah

1956 - 2021

A amante do rock que adormeceu ao som de João Gilberto e se descobriu na música de Jobim.

Pequena no tamanho e gigante no talento. Como descreve a irmã Suely: “Nancy era um tiquinho de gente, miúda, franzina, que calçava 32”. A pequenez de seus pés e mãos, contrastavam com seus grandes olhos azuis. “Era boa companhia, gostava de conversar sobre o que cativasse sua sensibilidade e imaginação.”

Nas brincadeiras de criança, Nancy era a boneca; uma boneca da realeza, pois até um trono – que era, na verdade um banquinho sobre a mesa – ela possuía. E ficava toda satisfeita quando a irmã a chamava de Alteza. A mãe não podia nem sonhar com essa história de banquinho em cima da mesa, morria de medo de que Nancy se machucasse; porque a menina, se chorasse, perdia o fôlego e até ficava roxa.

Nancy aprendeu a andar, encostadinha na parede e indo ao encontro de Suely, que a encorajava dizendo: “Vem, vem. Não tenha medo. Se cair, do chão não passa”. O gosto pela música também nasceu no convívio com a irmã. O pai era músico, então Nancy aprendeu a tocar violão e gostar de Música Popular Brasileira.

Em seu coração palmeirense, pulsava também a frequência do rock'n roll. Mas foi ao som da MPB que Nancy viveu na juventude uma das experiências mais marcantes. Nancy contava, toda orgulhosa, que havia dormido ao som de João Gilberto, no silêncio de centenas de pessoas para quem ele cantou até nascer o dia.

Tocando seu violão, a jovem vivia a busca da felicidade. Mais tarde, realizou-se como mãe, dando à luz Sarah e Siddhartha, e tornou-se avó de Kauã. Amava os filhos, o neto e também a gatinha Mel. E as mesmas mãos talentosas que dedilhavam o instrumento também teciam lindas peças de tricô.

À procura da liberdade, Nancy voava, como o “passarim”, aquele da música de seu ídolo, Tom Jobim: “Passarim quis pousar, não deu, voou. Porque o tiro feriu, mas não matou”. E em um de seus voos, Nancy acabou sendo vítima da dependência química, condição que não a fez perder a sua verdadeira essência, permanecendo aquele “fio de mel de doçura”, sempre acolhida e cuidada pela família, pois era no aconchego do lar que encontrava a proteção dos perigos do mundo lá de fora.

Por algumas vezes, desconectava-se da vida exterior para se trancar do lado de dentro, na esperança de enfim se libertar. Ao longo dessas tentativas de cuidado passou a conviver com o HIV. Aprendeu a ser mais vigilante com a saúde, mantendo o vírus sempre sob controle. Em meio às frequentes lutas por sua reabilitação, veio o diagnóstico de câncer.

“Ela ficou impressionada quando disse a ela que Jobim, assim como ela, também teve câncer na bexiga”. Sabiamente, essa foi a forma encontrada por Suely para manter a energia de vida da irmã. Por fim, veio a Covid-19, e foi nos braços de Suely que Nancy encontrou amparo.

Nancy voou sublime como o “passarim”, da música de Tom que representou tão bem a sua relação com a vida e o desejo de liberdade. Na memória da irmã Suely, ficou gravada a imagem daquela menina boneca, “sentadinha em sua almofada, com os sapatinhos de lã, quando ainda não caminhava para tão longe”.

Nancy nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 64 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela irmã de Nancy, Suely Farah. Este tributo foi apurado por Lucas Cardoso, editado por Rosimeire Seixas, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 8 de setembro de 2021.