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Neide Araujo Santos

1946 - 2021

Exaltou a liberdade e a crítica na família, estimulando o diálogo com afeto e leveza.

Aos cinco anos, Neide perdeu a mãe e ficou temporariamente sob os cuidados da madrinha. Depois de um ano, retornou ao convívio com o pai e irmãos, sendo o xodó deles. Na nova união do pai, mais dois filhos homens nasceram. Neide, então, se tornou a protegida dos cinco homens da família.

Na juventude, a caminho da escola, passava sempre em frente à farmácia onde conheceria o futuro marido, José Carlos, com quem teria três filhos. O período de namoro e noivado foi de dez anos. Depois, vida afora o casal veria crescerem Jonei, Érica e Giovana, dos quais nasceriam os seis netos - Lucas, Fabio, Maria Clara, Julia, Bruna e Ana Carolina.

Érica, a filha do meio, lembra que embora a menina tenha sentido a ausência da mãe, cresceu em um ambiente de afeto e confiança, alicerces para a própria família. “Ela plantou as sementes e nós, filho e filhas, e nossos filhos e filhas, colhemos os frutos”. Na casa dos Araújo Santos, carinho, conversa e diálogo nunca faltaram. Incentivo para a formação dos filhos e netos também não. Neide compartilhava a formação dos filhos, com educação de qualidade, respeito e ajuda de uns para os outros. “Nos tornamos uma família unida, sem ressentimentos e mágoas acumuladas”, resume Érica. E o mérito dessa formação é conferido à matriarca.

A filha caçula, Giovana, em quem a família reconhece as maiores semelhanças com Neide, afirma que seu maior orgulho é quando ouve sobre essa semelhança. Seja na aparência, seja na personalidade forte. “Nasci do ventre de uma guerreira batalhadora e ela sempre foi minha inspiração! Seus conselhos matinais em nossas ligações sempre tão sábios e ponderados, me ensinando sempre a lidar com meus temperamentos. Lembro dela como uma mulher de uma espiritualidade incrível com suas ‘tiradas’ espirituosas e engraçadas”. Para Giovana, Neide foi um ser único, atemporal. “Não envelhecia nunca e é ainda nossa grande matriarca”.

No dia a dia, Neide era uma mulher especial. “Era quem completava a casa, juntava a família, fazia as melhores comidas do mundo e tinha as melhores e mais engraçadas histórias”, diz Bruna. Maria Clara complementa: “Vovó sempre incentivou os netos a pensarem criticamente, deixava à nossa disponibilidade livros de vários assuntos que família tradicionais evitariam, como bruxas ou OVNIs”. No convívio com os netos, vovó contava as experiências dela com o espiritismo, passando todo o conhecimento acumulado para os descendentes. Ana Carolina completa: “Vovó com certeza foi uma senhorinha fora da caixinha. Passava a tarde estudando sobre política, ou espiritismo. Foi assim que ela me ensinou a sempre olhar pelas minorias e lutar por um mundo mais justo. Vovó sempre falou abertamente sobre a vida espiritual e foi a primeira e me acolher e ensinar quando minha mediunidade aflorou. Vovó mostrava que o mundo dos espíritos é algo natural e que não se deve temer”.

Da cozinha saíram muitas – e deliciosas – lembranças e recordações. Para Maria Clara, o melhor pudim, bife acebolado, arroz soltinho e creme de chuchu, receitas e mais receitas que encontramos até hoje perdidas por aí. Bruna traz o bobó de camarão.

Comida e convivência em família eram preferências da dona/vovó Neide. E ela gostava muito também de jogo de cartas. Buraco e canastra, com a família ou com amigos. Com os pequenos, adorava ir a piqueniques, à praia, acampar e abraçar “todas as maluquices da família”, como diz Maria Clara.

Os testemunhos das netas são encantadores.

Apaixonada pela família que formou, Neide era mulher antenada com o seu tempo. “Ela era muito família, amava um baralho e um joguinho diferente. Pegava tudo muito rápido, esperta que só ela. Extremamente tecnológica, sabia de tudo pelo site de vídeos”, diz Clara, destacando que a vovó era criteriosa, inteligente e um pouquinho desbocada também. “Sua casa era sempre gargalhada; tinha matemática na ponta da língua e as rimas eram únicas em todos os natais”. Rimas que lembram outro interesse de Neide: as canções. Para Bruna, a vó tinha uma voz linda, que acalmava. “Eu amava quando ela cantava a música Cativar".

“De todos os lados mais bonitos que a vovó já me despertou, o que tenho um orgulho especial é o lado da família. Dona Neide sempre fez questão de juntar a família pra fazer aquele almoção, conversar muuuito e, claro, proporcionar a famosa jogatina pra passar a tarde. Amo a forma como vovó nos ensinou a sermos unidos, a falarmos sobre nossos sentimentos e confiarmos um nos outros. Sempre vou lembrar da vovó como minha "véinha" que tinha a pele bem fresquinha, que adorava um baralho, bater uma perna na glória, falar sobre política, criticar o atual governo, estudar sobre o espiritismo, juntar toda a família, e acima de tudo mimar muito suas netas. Nunca vou me esquecer de cada detalhe seu, Dona Neide”, diz Ana Carolina.

“Difícil colocar em palavras quem era nossa Dona Neide, porque ela é muito mais do que eu um dia poderia descrever. Vovó era sinônimo de bondade e ternura. Dona da risada mais gostosa e das histórias mais engraçadas. Exemplo de honestidade e de força, sempre praticou e nos ensinou o poder do perdão e da caridade. Pensar na vovó é lembrar daquela comida cheirosa, das noites de jogos em família, dos vestidos de quadrilha que ela costurava, do abraço mais acolhedor do mundo, dos conselhos mais confortantes e dos gritos pela casa. Dona Neide sempre foi e ainda é um exemplo a ser seguido, com uma trajetória de vida maravilhosa. Que sorte a nossa ter tido a oportunidade de viver ao lado de uma pessoa tão incrível e única. Sou eternamente grata à ela por todos os ensinamentos e por nos deixar os dois legados mais importantes: a certeza na continuidade da vida e a união da nossa família”, escreve Julia.

Espiritualizada, afetiva e afetuosa, a matriarca também marcou presença forte na família quando o assunto era justiça social, como recorda Bruna. “Nem a idade, nem o tempo, fizeram-na querer parar de lutar por um país mais justo para todos. Passava a tarde ouvindo sobre política e falando mal do presidente que pouco fez pelo Brasil durante a pandemia. Te amo Dona Neide, você nunca será só um número. Obrigada por todos os ensinamentos, seu legado é enorme. Sinto muito a sua falta aqui em casa. Vovó era incrível. Ainda é. Só que em outro plano”, finaliza Bruna, a neta que trouxe para este Tributo a riqueza, a delicadeza e o afeto trazidos pelas mulheres formadas, criadas e amadas pela “dona” e “vovó” Neide.

Neide nasceu em Cachoeiro de Itapemirim (ES) e faleceu em Vila Velha (ES), aos 75 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelos filhos e netos de Neide, Bruna Petri Fonseca, Érica, Giovana, Carol, Julia e Maria Clara. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Patrícia Coelho, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 6 de dezembro de 2022.