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Noel Borrely Filho

1959 - 2022

Para aplacar a saudade de sua amada, ele colocava um frasco do perfume dela debaixo do travesseiro.

Não foram a estatura de um metro e 64 centímetros nem o sobrenome francês de Noel os principais ingredientes em sua existência. O técnico mecânico, que trabalhou por quarenta anos na mesma empresa, guardava em si traços de personalidade que fizeram dele uma pessoa única e especial em vários espaços por onde transitou.

Em São Paulo, onde cabe o mundo todo, Noelzinho, como era chamado no ambiente familiar, foi fruto do amor entre Seu Noel, de origem francesa, e Dona Maria Velasco, de origem espanhola. Antes dele nasceram Jussara, Cláudio e Sueli. Noel foi o quarto e quando ele já estava com seus 11 anos veio Eduardo.

Na infância, Noelzinho fez lá suas peraltices. Quando Dona Maria ia à igreja e não deixava que ele fosse junto quem sofria as consequências eram as plantas da mãe. Indignado com ter que ficar em casa tomando conta do irmão mais novo, Noelzinho não pensava duas vezes antes de pisotear o jardim. Nessas situações ele era pura pirraça. Noutros momentos, ele simplesmente prendia o irmão pequeno do lado de fora da casa, e deixava que Eduardo fosse para a rua sozinho, na esperança de que na próxima vez que Dona Maria saísse de casa ele pudesse acompanhá-la.

Sem querer e por obra do acaso, num tempo em que a garotada jogava futebol na rua, ele apreciava um jogo de bola que acontecia perto de casa. Um dos jogadores acertou em cheio uma colmeia que, enfurecida, partiu para cima de Noelzinho. O resultado foi uma internação hospitalar, pois a reação alérgica às picadas das abelhas foi intensa e preocupante.

Outro fato bom de lembrar é que Dona Maria fazia uma empada deliciosa. Para complementar o orçamento doméstico, Noelzinho e os irmãos vendiam as guloseimas em dias de jogos no estádio do Morumbi. Descontando a farra que faziam na ida e na volta para casa, levavam bons trocados para que a mãe pudesse abastecer a despensa.

Passou o tempo e, na mocidade, ele fez o curso de Técnico em Mecânica. Logo depois começou a trabalhar numa fábrica de hidrômetros na área de desenvolvimento de produtos. Foram quarenta anos de dedicação, responsabilidade e zelo com suas atribuições.

E foi no ambiente de trabalho que Noel teve o primeiro contato com Maria Cristina. Foi durante um curso para funcionários da empresa de saneamento básico na qual a futura esposa trabalhava. E foi amor à primeira vista — o que abre espaço para contar alguns acontecimentos marcados por muito afeto e cumplicidade.

Maria Cristina conta que não demorou muito para que ficasse totalmente apaixonada por Noel. O jeito educado, gentil e atencioso do homem de fino trato foi encantando o coração daquela que estava ali inicialmente para fazer um curso associado à sua vida profissional. “Ele era um gentleman” diz Maria Cristina, ainda com ar de apaixonada, acrescentando que a sensação que ocupou seu coração naquele momento foi a de que “ele era minha alma gêmea”. O certo é que o curso durou cinco dias e esse curto tempo foi suficiente para que Maria Cristina se apaixonasse e anotasse o endereço de Noel.

Ele morava na capital paulista, ela em Santo André, Região Metropolitana de São Paulo. Mas o amor foi capaz de manter-se vivo. Num tempo em que as distâncias pareciam maiores e as comunicações aconteciam por meio de cartas ou telefone fixo, tudo aconteceu bem devagar.

O primeiro movimento foi uma carta escrita por Maria Cristina, que ficou sem resposta. O segundo, outra carta redigida e enviada depois de muito pensar e se aconselhar com a mãe. A correspondência levava as palavras carinhosas de Maria Cristina e um convite para que Noel participasse do almoço de aniversário da avó da futura namorada. E Noel aceitou. É de se destacar que a carta resposta de Noel, aceitando o convite, segue guardada como uma relíquia por Maria Cristina.

Na data marcada, no ano de 1980, Noel pegou o trem e, como combinado, esperou pela chegada de Maria Cristina na Estação. Era dia de jogo do time de futebol de Santo André e Maria Cristina acabou se atrasando, pois, num tempo em que o início dos relacionamentos era monitorado pela família, ela dependia da companhia do irmão José Carlos para ir buscar Noel. Torcedor fanático do Santo André, o irmão só aceitou acompanhá-la até a estação depois do final da partida.

Com a demora na chegada de Maria Cristina, Noel decidiu pegar o ônibus sozinho. Nas proximidades do endereço desembarcou do coletivo e encontrou a rua. Um pouco perdido, Noel caminhou por toda a via e foi até o bar do Osvaldo, que, não por acaso, é primo de Maria Cristina, e que lhe mostrou onde ficava a casa dela. Noel se apresentou e ficou aguardando a chegada de Maria Cristina. Festa, almoço, conversas, e estava selado o início do namoro e de um longo relacionamento cheio de alegrias e desafios.

Com a distância que os separava e num tempo em que não havia internet nem redes sociais, o namoro acontecia por telefone fixo. Terezinha, prima de Maria Cristina, cedia o telefone. E nos horários marcados, Noel telefonava para que pudessem conversar.

Apesar do sentimento de Dona Maria, que de tanto gostar do filho “tinha dó que ele se casasse”, o Noelzinho ficou noivo. O pedido de casamento aconteceu numa churrascaria e “foi lindo”, recorda Maria Cristina. Ao longo do tempo, além de Noelzinho, ele passou a ser também “Noa”, o bem querer da esposa.

O amor de Noelzinho pela mãe durou por toda a vida. Quando já velhinha ela desenvolveu Alzheimer e ele foi contra a internação dela. Voto vencido, ficou tão magoado que nunca quis visitá-la no local onde passou a viver.

Do relacionamento amoroso entre Noa e “Flor”, modo carinhoso como se referia a Maria Cristina, nasceram Thiago e Felipe, que depois ganharam também o irmão de coração Jancler, adotado pelo casal. Juntos conviveram como uma família harmoniosa apoiada na boa relação do casal. Depois, virou avô de Thiago Henrique, Sofia e Mariana.

Como pai, Noel sempre foi carinhoso e amigo. Apesar das viagens, era comum que saíssem juntos para dar uma volta de bicicleta e tomar refrigerante. Quando foram crescendo, ensinou os filhos a dirigir.

Durante boa parte do período de casamento Noel viajava bastante a trabalho e ficava longos períodos fora de casa. Flor e os filhos ficavam em Taboão da Serra, cidade também vizinha à capital paulista que os acolheu durante boa parte da vida.

Um dos grandes desafios vividos por Noel foi sua demissão após quarenta anos de trabalho. Inicialmente ele ficou entristecido, passou a beber um pouco mais e a sensação de Maria Cristina, na época, foi a de que seu “príncipe tinha virado um sapo". Ele sentia falta de sair de casa para trabalhar. Aos poucos, foi se reerguendo. Vendedor nato, passou a comercializar potes de palmito. Tudo se reequilibrou e a vida seguiu.

Ao mesmo tempo, Noel conseguiu realizar o grande sonho de sua vida: comprar um apartamento na praia! O local escolhido foi Praia Grande, em São Paulo, cidade onde Maria Cristina passou a viver e para onde Noa viajava nos finais de semana. É que ele seguiu morando por um tempo em Taboão da Serra, na casa do filho Tiago que, casado com Sandra, deu a Noel a netinha Mariana. A relação entre avô e neta era afetuosa a tal ponto que, no período em que ele morou na casa do filho, se Noel estivesse presente, ela só dormia de mão dada com ele.

Como já dito, nos finais de semana era tempo de descer para o litoral paulista e aproveitar o apartamento e a companhia de Maria Cristina. Ela conta que em muitas manhãs ele chegava e perguntava à sua Flor se ela queria “me dar o prazer de tomar um café comigo”. Ela sempre aceitava e os dois seguiam para a padaria onde havia tempo de conversar. Depois era momento de sair caminhando pela praia. Sol, cerveja, água de coco, mais conversas e um exercício de contemplação do mar. Nas paradas ao longo da orla, Noel não se cansava de apreciar o verde do mar de Praia Grande.

Na volta para Taboão da Serra, com saudade de sua Flor, Noel sempre tinha consigo um pequeno frasco com o perfume usado por ela. À noite, antes de dormir, colocava o vidro debaixo do travesseiro para adormecer sentindo o cheiro de sua amada. Por falar em cheiro, a memória olfativa de Flor guarda, com requintes de um frasco de perfume, o cheiro de seu querido Noa.

Por cerca de dois anos, Noa e Flor viveram juntos em Praia Grande. E num dos Natais que lá passaram, aconteceu um fato que demonstra bem como Noel era um homem sensível, gentil e carinhoso. Um tempo antes, assistindo televisão juntos, Noel acompanhou a emoção de Maria Cristina ao ouvir um relato feito pelo padre Fábio de Melo. Na tela ele aparecia contando que em sua infância desejava muito ter uma caixa de lápis de cor daquelas bem grandes, com 36 cores. Com a aproximação do Natal pediu ao filho Tiago que comprasse uma dessas caixas para dar de presente à sua Flor. Teve o cuidado de pedir ao filho que identificasse o pacote com o próprio nome, a fim de que Maria Cristina não ficasse curiosa e pudesse tentar saber o que havia dentro do embrulho. Na noite de Natal, durante a distribuição dos presentes, pediu ao filho Felipe que pegasse o pacote e entregasse à mãe. Ao abrir a embalagem, Maria Cristina se emocionou, chorou de alegria e os dois se abraçaram e beijaram muito, tamanha foi a felicidade.

No que se refere às amizades, é preciso voltar a falar do José Carlos, o irmão de Maria Cristina que protagonizou o atraso para chegar ao local marcado com Noel no dia do primeiro encontro dos dois. Ao longo do tempo José Carlos e a esposa, Maria Gorete, tornaram-se grandes amigos de Noel e Maria Cristina. Os quatro eram companheiros inseparáveis nas viagens a Salvador, na Bahia, e a Serra Negra, no interior paulista, e foram batizados pelos filhos de Noel como “os velhos de Serra Negra”.

Outros momentos de encontro muito agradáveis aconteciam numa casa localizada em Praia Grande, alugada de uma sobrinha só para fazer churrasco. Isso mesmo. O casal seguia morando no apartamento, mas alugava a casa para poder usar nos finais de semana, pois Noel amava preparar churrasco para os filhos e os amigos. Maria Cristina rememora como eram deliciosos aqueles momentos de aproveitar a convivência dos amigos e saborear o churrasco do Noel.

No comum dos dias Noel era discreto e nada vaidoso. São-paulino doente, assistia aos jogos do seu time do coração pela televisão e xingava muito quando a equipe não jogava bem. Além das partidas de futebol, gostava também de ver outros programas na TV. Um dos locais prediletos da casa era a cadeira do papai, onde se sentava, cruzava as pernas e assistia televisão sempre chamando Maria Cristina para ficar por perto ou trazer alguma coisa para ele. À mesa, tinha prazer em saborear uma bela bacalhoada ou a língua recheada preparada pela mãe, Dona Maria. Gostava também de ir a restaurantes para fazer refeições ou tomar uma cerveja. Mesmo com o advento dos pagamentos digitais, Noel gostava de imprimir e guardar contas e recibos de pagamento.

Noel, o lavador oficial de louça da casa, segue vivo todas as vezes em que, depois das refeições, os utensílios precisam ser lavados e guardados. Na caixa de 36 lápis de cor guardada como uma relíquia por Maria Cristina. Vivo está no coração de sua Flor, como o grande amor de sua vida; o melhor avô que conheceu; o melhor marido, que nunca dizia não, e que lhe proporcionou qualidade de vida. Vive também no imaginário infantil de sua netinha Mariana que quando visita a casa dos avós e vê suas fotos pergunta onde está “o meu precioso e meu vozinho”? Quando amigos e parentes olham para o mar e, na visão do vai e vem das ondas, relembram o quanto Noel amava ver o brilho do oceano.

Noel nasceu em Taboão da Serra (SP) e faleceu na Praia Grande (SP), aos 63 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa de Noel, Maria Cristina de Marchi Borrely. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 28 de maio de 2023.