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Odair Prado da Silva

1958 - 2020

Com as madeiras antigas da casa de sua avó, construiu um deck novinho para sua própria casa; tudo era reutilizado.

Essa é uma homenagem de Emanuelle a seu amado pai:

O apelido dele era Tio Oda, pois era assim que os alunos dele na década de 1980 e 1990 o chamavam; era professor de Matemática. Amava escutar música, pescar, conversar, ir ao bar do Zé e andar de bicicleta. Tinha enorme prazer em estar na sua casa dele na Barra do Saí, em Itapoá. Amava o mar e o rio. Era apaixonado por fazer passeios pelo mangue, pegar e caranguejos.

Uma pessoa séria, pouco afeito a contatos físicos, que fez de tudo pelos filhos. Homem de caráter, honesto. Sempre muito inteligente, papo agradável. Sabia falar de todas as coisas. Todos o admiravam pela forma de como levava a vida. Embora tenha conseguido bens materiais, nunca foi apegado a eles. Era uma pessoa desprendida disso. Vivia cada momento como se fosse o último. Nos últimos anos, estava bastante ligado à família. Fazia grandes aniversários rodeados de familiares e amigos. Casado uma única fez com Maria Aparecida, teve três filhos, Leonardo, Emanuelle e Gabrielle. Valorizava as coisas simples da vida.

Meu pai trabalhava três turnos como professor. Mas, quando eu tinha quatro ou cinco anos sempre parava em uma mesinha de brinquedo que eu tinha para tomar meu café imaginário. Ele dava uma uma pausa de alguns segundos na correria do dia; e isso era a maior expressão de amor para mim. Eu sou a caçula, de três irmãos; eu e meu pai tínhamos um gênio muito igual, sempre digo que nunca faltei com respeito ao meu pai, apesar de termos personalidades muito fortes. E muito do que sou hoje devo a ele: meu pensamento critico, ter opinião, às vezes ser geniosa, ter senso de justiça. Sempre conversávamos muito, tenho muitas lembranças dele na minha infância. Ele recebeu uma criação difícil, por isso ele não era uma pessoa de abraçar e beijar, ele mostrava afeto nas atitudes.

Quando me separei, meu pai me ajudou muito. Em 2016 tive depressão e meu pai me buscava todo dia na cidade onde eu moro, e me levava pra casa dele, ficávamos o final de semana juntos e ele me levava de volta na segunda-feira, direto para o trabalho. Eu via nesse cuidado o jeito mais genuíno de mostrar amor por mim.

Ele sempre demonstrava preocupação pelos três filhos, mesmo sendo professor e ganhando pouco, sempre fez de tudo pra não faltar nada para nós, sempre nos ensinou que por meio da educação tudo fluía; nos ensinou bons princípios, que dinheiro que não era nosso, não era nosso. Então, nossa conexão era muito forte.

Nossa família se uniu muito nesses últimos anos, às vezes a minha mãe comentava que não nos bicávamos por sermos iguais demais, e isso sempre nos fez um respeitar o outro. A vida do meu pai foi sempre muito corrida, minha mãe que acabou criando a gente, mas ele sempre se esforçava para estar por perto, ele fazia pão de queijo natural, ele produzia quefir pra fazer iogurte para gente, até pão de ló ele sabia fazer. Ensinou a amar e respeitar o mar, porque ele nasceu na praia, foi criado pelos avós, então quando íamos para a praia a água era só até joelho, ele monitorava a gente, ele nos ensinou a nadar, colocava colete, cuidava mesmo.

Ele tinha nove irmãos. Teve uma vida pobre, era o filho mais velho e trabalhava para colocar comida dentro de casa. O pai dele era uma pessoa bem rígida, bem tradicional. Quando ele era criança tinha uma péssima caligrafia, ele era péssimo em Português. O primeiro emprego dele foi em um posto de gasolina. Depois, ele pintava casas, para poder estudar, foi uma infância muito difícil, e ele fez tudo pra poder estudar.

Tinha uma salsicha feita aqui no Sul, era um embutido bem feio, grande e mal feito; essa era a comida mais gostosa que eles provavam. Atualmente, ele ia ao mercado e não podia nem ver esse produto. Foi uma infância bem difícil. Ele sempre ajudou em casa, ajudou a comprar os materiais escolares para as irmãs mais novas, ajudava cuidar delas, a comprar roupas para elas. Ele sempre nos contava sobre a dificuldade dos estudos e do trabalho pra nos ensinar e darmos valor.

Meu pai viveu muitos anos com os avós em uma casa de madeira; nessa época, eles tiravam água do poço. Uma vez, ele inclusive, caiu nesse poço. Tinha uma relação muito bonita com a avó dele, eles eram bem grudados até ela falecer.
Meu pai também tinha uma relação muito boa com minha tia Edna, eles eram bem parceiros, quando ele começou a trabalhar, dava dinheirinho pra ela fazer massagem nele; ele sempre a levava para a praia, para viajar, eles eram bem próximos.

Muito esforçado, conseguiu deixar uma casa para cada filho, sempre amou o mar e quis ter uma casa de férias lá, onde ele morou quando se aposentou. Minha avó faleceu e meu pai pegou tudo que tinha na casa, ele pegou ferro velho, filtro de barro e um monte coisas para guardar como lembrança dela. A família queria demolir a casa, ele brigou com a família e pegou as madeiras da estrutura da casa. Cortou madeirinha por madeirinha, fez cada detalhe com muito cuidado e amor, e hoje temos as madeiras da casa da minha avó, na nossa casa. Então, ele gostava muito de otimizar, reutilizar e transformar tudo.

Meu pai sempre falava "Quem não junta um prego, não vale um prego". Ele guardava pedaço de cano, porque achava que uma hora iria utilizar. Ele guardou cesto de ovo de galinha da avó, coleção de moeda, jarro de metal, chave da casa dela, pegava os móveis velhos e reformava. Guardava carta dos alunos, documentos, folhas de pagamento, tudo que ele achava importante.

Minha irmã brinca que em uma das casas que ele fez, ele utilizou inúmeros pregos que ele só pôde utilizar porque a colocou para desentortá-los. A casa que temos na beira do rio, é de tijolo ecológico, meu irmão, ele e eu fizemos essa casa, com uma máquina de tijolos. Meu pai fez uma horta na velhice, plantou tomate para fazermos molho, abacaxi, limão, aipim, alface. Sempre falei para minha mãe que tudo que ele plantava dava demais.

Ele e minha mãe iam em bares de sertanejo raiz; tinha uma amiga dele que sempre que ele estava presente cantava a música "Paredes Azuis". Ele também gostava de pescar, sempre pegou caranguejo no mangue. Ia de madrugada, e demorava muito, mas sempre voltava com peixe, gostava de ir pescar em alto mar. Andava bastante de bicicleta, batia ponto na casa da mãe dele, todos os dias às 5h da manhã; ele tomava café e ia visitar a mãe. Ele odiava Joinville, mas quando nasceu minha sobrinha, ele ia todo sábado vê-la, e quando íamos nos despedir, ela queria andar de carro, ele a levava ela até o final da rua e depois a devolvia, ele ficou bem "vozão" mesmo.

Com a idade ele ficou ainda mais parceiro da minha mãe, ia ao mercado com ela, à praia, saíam bastante. Ele sempre teve dois carros, pegava carro no leilão e reformava. Uma vez ele encheu o tanque de um carro e deu pra minha irmã e eu sairmos. Antes de dar a chave ele falou para trazermos um band-aid, e nós esquecemos, ele nos zoou muito falando "Quem vai lembrar do velho na rua, né?"

Gostava de se vestir igual os jovens, tinha preferência pelas roupas de cores claras. Teve uma velhice saudável, ar puro, mar, horta, tudo saudável; ele amava a vida. Tinha também apego à rotina, gostava de ficar sozinho, quando íamos visitar, ele ficava doido com a família inteira dentro de casa.

O que ele mudou bastante na velhice, foi animar de fazer festa de aniversário; fez nos últimos cinco anos. E eram festas de arromba. Quem ele encontrasse no mercado, ele convidava. Uma vez passou de 100 pessoas, churrasco de chão, salada, só fazia o povo levar cerveja; tinha bolo decorado, vela, músico, tudo. E, eu costumo falar que ele aproveitou bastante a vida nesses últimos anos.

Tem um irmão dele que mora nos Estados Unidos. Quando esse irmão vinha para o Brasil, ele fazia a noite dos frutos do mar e reunia a família. Quando era jovem, amava panqueca, inhoque, sempre comia muito peixe, comia também linguiça pura e bolinho de banana, amava um camarão e um bom caldo de peixe.

A rotina dele quando trabalhava era passar os fins de semana na praia; íamos na sexta à noite e voltávamos na segunda, ele deixava cada um de nós na escola e ia trabalhar. Sempre leu muito; quem quisesse saber de algo, podia ir conversar com ele. Era apaixonado pela natureza, pelos bichos, cuidava das galinhas, gansos, codornas.

Odair nasceu em Guaratuba (PR) e faleceu em Joinville (SC), aos 61 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Odair, Emanuelle. Este tributo foi apurado por Emily Bem, editado por Ana Macarini, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 18 de novembro de 2021.