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Ormenes Souza Coelho

1957 - 2020

Era só a esposa bater e assar um bolinho que ele ligava para reunir toda a família.

A bebida tomou conta da vida do Senhor Ormenes por trinta e cinco anos. Um dia, ele recebeu o salário e, do trabalho foi direto para o bar; gastou tudo em bebida. Sem coragem de voltar logo para casa, demorou um pouco mais que de costume para regressar; quase matou Dona Eliene, sua esposa, de preocupação. Acostumada e desacorçoada da vida com o vício do marido, pensou: "Esse homem deve estar na rua bebendo".

Mais tarde, Senhor Ormenes voltou para casa ─ totalmente sóbrio; trouxe consigo o amigo e vizinho, Senhor Antônio, que era participante dos Alcoólicos Anônimos. Prometeu que daquele dia em diante nunca mais beberia. E, não apenas cumpriu a promessa como também tornou-se coordenador do A.A. onde atuava, ajudando outras vítimas do vício, como ele, a vencer esse ardiloso inimigo.

O fundo do poço foi para o Senhor Ormenes a porta para uma nova vida. Logo ele que era um homem tão trabalhador, mecânico industrial que só se aposentou quando sua saúde debilitada o impediu de seguir na ativa, forçando-o a se aposentar; logo ele que ensinava aos filhos "Olha aqui! Quando receberem seus salários, primeiro paguem todas as contas! Honrem seus compromissos! E, só depois, se sobrar alguma coisa... é que vão pensar em diversão!"; logo ele, tão íntegro, havia derretido o ganho de um mês inteirinho de trabalho honesto no vício da bebida.

Ali ele se transformou. Talvez tenha sido um milagre promovido pelo imenso amor da esposa Eliene, tão apaixonada por seu Ormenes desde os 12 anos; talvez tenha sido o desejo de ser um bom exemplo para os filhos e netos. Quem pode saber? O fato é que nunca mais esse homem colocou uma gota de álcool na boca.

Foi um avô incansável, louco pelos 13 netos. Os mais próximos, Christyan, Christyano, Brunna, Bryan e Ana Christyna, contavam com a presença firme e amorosa do vovô Ormenes, fosse para levar ao médico, buscar na escola, promover passeios, ir às reuniões escolares ou ensinar a dirigir; tudo ele resolvia, caso os pais dos netos amados não pudessem resolver por alguma razão.

A filha Cristiane conta que o pai era "pulso firme" com os filhos, nada de ir ou ficar na rua; era de casa para a escola e da escola para casa; nada de fazer amizades por aí; criação no estilo militar mesmo; "Mas serviu! Hoje somos todos pessoas de bem!", afirma a filha.

O senhor Ormenes era também o grande conselheiro de toda a família; qualquer problema sempre era dividido com ele e tudo que ele dizia ou opinava era ouvido com muito respeito e considerado. O esposo de Cristiane tinha pelo sogro um carinho muito especial, para ele, o Senhor Ormenes era um verdadeiro pai. Certa vez o rapaz sofreu um acidente e foi o sogro quem ficou com ele no hospital e, depois, foi também ele que o levou às sessões de fisioterapia. Quando foi para casa o genro, tinha todas as tardes a companhia do "pai postiço" que justificava sua presença diária dizendo "Um homem que está acostumado a trazer o provento pra casa, quando falha, pode até ficar louco em ver as dificuldades e não poder fazer nada."

Nos aniversários, o churrasco era sempre garantido por esse homem que venceu um grande inimigo, que foi exemplo de honestidade e perseverança, que foi presença nos momentos difíceis e nas alegrias também. E no dia a dia da família, sempre que Dona Eliene bater e assar um bolinho, cada um de seus descendentes vai dedicar um pedacinho do doce ao avô, ao pai, ao companheiro... que partiu em corpo, mas que vai viver para sempre no coração daqueles a quem tanto amou e que o amarão até o fim de suas vidas.

Ormenes nasceu em Portel (PA) e faleceu em Belém (PA), aos 62 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Ormenes, Cristiane Sodré Coelho. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ana Macarini, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 18 de novembro de 2020.