Sobre o Inumeráveis

Ovilia Badessa de Abreu

1963 - 2021

Mãe amorosa que enxergava o cansaço nos olhos da filha e o curava com comidinha boa, escuta e aconchego.

Ovilia foi casada com Gustavo por trinta anos, uma marca que o marido sonhava em comemorar numa bela cerimônia na Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, a mesma em que se casaram.

Eles se conheceram durante uma internação hospitalar da mãe dela e onde ela, que sempre a acompanhava, conseguiu um estágio como psicóloga. Ele que já trabalhava lá, era muito amado como um profissional simpático e gentil pela paciente especial porque, durante seus plantões os dois jogavam buraco. Quando se encontraram, ele imediatamente se interessou por ela, que sempre foi muito bonita, mas a diferença de idade entre os dois fez com que demorassem alguns meses para engatarem um namoro e, quando isso aconteceu, apaixonados, não demoraram muito para se casar.

Ovilia sempre foi uma esposa extremamente dedicada, permanecendo ao lado do marido nas alegrias e nas dificuldades. Juntos tiveram os filhos Raphael e Johana e ela nutria também muito carinho pelo Tiago, fruto do primeiro casamento de Gustavo, que via nela sua melhor amiga.

Como mãe, era a melhor do mundo e faria qualquer coisa por eles de olhos fechados, como conta Johana: “Dotada de zelo, diariamente estendia a cama para dormirmos bem. Quando eu estava passando por algum momento difícil, minha mãe dormia de mãos dadas comigo. Por me conhecer melhor do que qualquer um, sabia que eu chorava quando estava muito cansada. Por isso, quando ela percebia o cansaço estampado em meu rosto, fazia o que podia para me mimar: fosse me levando um prato de comida na cama ou me massageando para acalmar o meu coração. Em cada momento do meu dia, há um pouco dela. Quando eu ia trabalhar de bicicleta, na volta, ela sempre me buscava. Passávamos um dobrado para colocar a bike no carro, enquanto gargalhávamos por toda aquela situação”.

A maior satisfação de Ovilia era reunir a família e os amigos para os almoços e jantares. Por gostar de mesa farta, preparava as refeições como se um batalhão do exército estivesse lá. Os pratos saídos de sua cozinha eram muito bem temperados e saborosos. Cuidava de cada detalhe com muito apreço: a comida era abundante e deliciosa, a organização da mesa era impecável e os convidados se sentiam em casa com todo o acolhimento e atenção dados pela minha mãe. Nossa casa estava sempre cheia e transbordando de alegria! “Adorava uma cerveja gelada em uma noite quente e era excelente cozinheira; minha comida favorita preparada por ela era o frango assado, mas também me deliciava com sua feijoada branca deliciosa e com todas as comidas feitas no Natal. Minhas amigas amavam o estrogonofe que ela fazia”, diz Johana.

Ela era também dotada de dons artísticos: fazia peças de costura, crochê, tricô. O macramê que confeccionava se destacava com trabalhos impecáveis.

Ovilia era psicóloga e trabalhava na área social. Definitivamente, ela nasceu para auxiliar pessoas em situação de vulnerabilidade. Diariamente, lidava com casos de extrema dificuldade e ainda garantia o cuidado da nossa família, e, todas as vezes que ela contava alguma história do trabalho, a admiração da filha por ela crescia cada vez mais.

Para ela era comum buscar pessoalmente idosos e crianças abandonadas em locais perigosos, dar-lhes o suporte psicológico necessário e encaminhá-los para auxílio jurídico e governamental.

Certa vez, uma senhora, em situação de rua, estava desalojada e, por ser tutora de uma cachorrinha, não queria ficar nos abrigos porque nesses locais é proibida a entrada de animais. Então, para tranquilizá-la, Ovilia se responsabilizou nos cuidados da cachorrinha enquanto encontravam um lugar seguro para a senhora e a sua companheira de estimação.

Não media esforços se fosse para ajudar alguém e Johana conta histórias sobre sua solidariedade: “Por ter pressão alta, minha mãe era do grupo de risco, mas, ninguém que atuava no serviço social foi liberado para trabalhar em casa. Neste período, uma das colegas de trabalho dela descobriu estar grávida e, então, mesmo colocando o seu próprio cargo em risco, minha mãe decidiu que Tamiris ficaria em casa garantindo tranquilidade durante toda a gestação. A Tamiris sempre se emociona ao falar da minha mãe e o quanto ela foi crucial para que o filho Arthur chegasse ao mundo saudável e em paz!”

Em seu trabalho, Lia, como era chamada pelos colegas, sempre foi vista como alguém extremamente humana, disposta, inclusive, a se prejudicar para proteger quem quer que fosse.

Aos olhos da filha, Ovilia nasceu com dois propósitos em sua vida: trabalhar na área social e ser mãe; e o que ela sente mais falta é dos pequenos gestos de amor no correr dos dias. “Definitivamente, ninguém nunca me amará como minha mãe me amou. Ela fazia quaisquer coisas só para ter o prazer de assistir aos meus olhos brilharem “, diz ela.

Nas horas livres, aproveitava para tirar um cochilo e assistir alguma série ou novelinha. Outra paixão dela eram as plantas. Era capaz de passar horas cuidando das flores e dos jardins e fazia tudo muito bem.

Fora isso, ela também amava viajar e duas viagens internacionais que fez em família se tornaram inesquecíveis para ela: Uruguai e Portugal. Sobre estes passeios, Johana se recorda deles com muito carinho e saudade: “Temos histórias divertidas, que sempre me fazem rir e rememorá-la. Em nossa viagem a Portugal, por exemplo, ela, minhas amigas, Carol e Gabi, e eu, fomos a uma cidade antiga. Nesta ocasião, minha mãe e eu bebemos incontáveis taças de vinho, o que nos fez gargalhar incontrolavelmente durante o restante do passeio. Quando voltamos para Lisboa, ainda sob o efeito do álcool, cantamos e rimos no carro como se não houvesse amanhã. Nesta mesma viagem, conhecemos juntas lugares belíssimos, tiramos muitas fotos e vivemos momentos inesquecíveis! Minha mãe sonhava em conhecer a Europa e tudo saiu perfeitamente, como um sonho”.

E Johana continua desfiando suas memórias: “Quando estava prestes a me casar, escolhemos juntas o meu vestido de noiva: percorremos inúmeros ateliês, desde a Vinte e Cinco de Março até a rua das noivas. Decidimos o tecido e tiramos muitas fotos deste dia. É uma lembrança memorável! Apesar de ter casado sem a presença da minha mãe, o vestido com o tecido que escolhemos fez com que a sentisse perto de mim”.

“Por um tempo, corríamos no parque, todos os dias, apenas nós duas. Depois do exercício, comprávamos água de coco e voltávamos cansadas para casa, às vezes em silêncio, mas, sempre uma ao lado da outra. Eu daria qualquer coisa para reviver essas lembranças por mais um segundo".

A filha continua falando das peculiaridades e fatos marcantes vividos com a mãe: “Minha mãe era muito engraçada na forma de falar, por vezes, o 's' saia com um som de 'x'. Certa vez, ela dormiu durante toda a tarde. Então, acordou toda assustada gritando: 'Gente! Dormi no expediente!', mas o som se assemelhava à 'Xentem, dormi no expediente!'. Meu irmão, meu marido e eu adorávamos imitá-la”.

“Outro fato divertido é que minha mãe não dirigia muito bem, ela não se achava direito nos caminhos, tinha dificuldades com ruas paralelas. Ela se atrapalhava quando a apressavam. Por vezes, ficava perdida quando isto acontecia e dizia para não a acelerarmos porque, deste modo, não conseguia fazer as coisas”.

“Ela tinha muito medo de altura. Então, quando estávamos em algum lugar alto, minha mãe sempre falava: 'Ai, filha! Sai daí, filha!'. Acabei pegando esse medo dela! Ela também morria de medo de avião. Certa vez, fomos para Vitória, no Espírito Santo. Enquanto começava a decolagem, minha mãe começou a rezar: durante toda a subida era possível ouvir uma súplica a Nossa Senhora Aparecida em alto e bom-tom”.

O amor de Ovilia também se estendia aos animais, conforme conta Johana: “Em 2015, adotamos três cãezinhos: um pastor alemão chamado Rufus, a Flora e a Fauna. Logo em seguida, a Fauna acabou falecendo, o que fez com sofrêssemos muito. Por sua vez, a Flora tornou-se a minha melhor amiga e o Rufus era como um filho para minha mãe. Envolvidos por tanto amor animal, decidimos adotar a Veveu, que era um grude só com a minha mãe. Passávamos horas contemplando os animaizinhos brincando em nosso quintal.”

“Minha mãe sempre dizia querer ajudar mais animaizinhos. Ela, inclusive, tinha o desejo de abrir um hotel para os bichinhos ou participar de alguma ONG para resgatar animais. Em 2018, durante uma trilha, meu marido e eu encontramos uma gata paraplégica, muito arisca e medrosa. Demos a ela o nome de Bibi. Minha mãe e eu fizemos todo o possível para que a gatinha se recuperasse: levávamos na fisioterapia e na acupuntura, mas a Bibi permaneceu sem andar. Então, nos revezávamos nos cuidados com ela. Minha mãe apaixonou-se pela gatinha de tal maneira, que brincávamos que ela tinha virado um fru-fru de madame. Todo o amor dedicado a Bibi fez com que ela, antes arredia, se tornasse doce e muito amorosa.

Selecionar memórias especiais é uma tarefa difícil para Johana: “Absolutamente tudo me faz lembrá-la! Todos os dias, todas as horas! Entretanto, ela possuía uma particularidade: por ser muito sensitiva, ela sonhava antes de acidentes grandes, sentia quando algo aconteceria”.

“Nossa família é bastante musical. Então, para cada situação, existe uma música que me faz lembrá-la: Por exemplo, "Oceano", composta e interpretada por Djavan, é a música dos meus pais. Todas as vezes que a escuto, lembro o quanto minha mãe pôde usufruir da beleza da vida: viveu um grande amor e teve filhos, que, como ela sempre dizia, eram a maior alegria que ela já vivenciou; Recordo-me, também, que sempre fazíamos um dueto, cantando "Como nossos pais" bem alto no carro”; Durante o meu noivado, minha mãe cantou para mim, "Fascinação", como declaração de amor; No meu casamento, deixei o altar ao som desta mesma canção, para homenageá-la e de, mais uma vez, ela estar presente nos detalhes mais especiais”.

Essa musicalidade da família esteve presente até o final: “Quando minha mãe estava na UTI, já em estado grave, meu irmão, músico, levou o violão e os médicos nos deixaram cantar para ela. Deixamos toda a emoção que havia em nosso peito ressoar enquanto cantávamos "Maria, Maria", do Milton Nascimento. Naquele momento, como um milagre, ela deu indícios que melhoraria, mas, dias depois, infelizmente, partiu”.

E ela se recorda de muitos outros detalhes: “Alimentos muito específicos me fazem lembrá-la: salada de repolho e salada de rúcula com alho, por exemplo; ela tinha por hábito, acordar muito cedo, descer as escadas, deitar no sofá e dormir mais. Fazia isso todos os dias; eu sempre me recordo com saudade do seu perfume e do cheiro dos cremes que ela utilizava. Minha mãe mantinha-se sempre muito cheirosa”.

“Minha mamãe é a melhor pessoa que eu já conheci, o coração mais lindo que já vi. Sempre estava me esperando de coração aberto e pronta pra me dar as mãos em momentos difíceis. Era com ela que eu desabafava sobre tudo. Minha mãe, minha melhor amiga. Toda atrapalhada, de uma dança engraçada, uma voz linda e um sorriso incomparável. Que falta me faz todos os dias e todas as horas!”

Quando indagada dos ensinamentos deixados por Ovilia, Johana resume: “O meu maior medo era perdê-la. Todas as vezes que tinha pesadelos com isso, ia acordá-la para ter a certeza de que minha mãe estava bem. Então, ela se desesperava pensando que tinha acontecido algo grave. O jeito amedrontado, mas tão particular, com que minha mãe lidava com essas situações me traziam de alguma maneira paz e me rendiam boas risadas. Pouco antes de ela adoecer, por algum motivo, eu perguntei o que ela faria se meu irmão ou eu, morrêssemos, porque quando eu pensava na morte dela ou do meu pai, sempre achava que morreria junto. Minha mãe respondeu: 'Filhinha, se eu não tiver um AVC com a notícia, eu viveria. A vida continua e tem que continuar, temos que ser gratos pela vida.' Essa resposta foi a única coisa que me trouxe forças para seguir adiante”.

Ovilia nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 57 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Ovilia, Johana Badessa de Abreu. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Ana Macarini em 7 de junho de 2023.