Sobre o Inumeráveis

Paulo Norberto Salati Marcondes

1951 - 2021

O Gato Malhado que escreveu com sua Andorinha Sinhá a mais improvável, verdadeira e bonita história de amor.

Para você Boró, meu Gato Malhado, com todo meu amor, da sua Andorinha Sinhá, Cris.

Estou em frente ao computador tentando dar conta de colocar em palavras uma vida inteira. Mas logo me vem um pensamento, de que se você pudesse me ajudar, estaria falando: “Cris, começa logo com aquela vez que a gente foi num coquetel da Encol acompanhando a Rose, lembra?” Como eu poderia esquecer? Dessa e de tantas outras histórias engraçadas, cheias de alegria e tão únicas, que você protagonizou. Porque, se tem uma coisa que você foi, foi essa: a de protagonista de sua vida.

Mas vamos ao evento que você escolheria que eu contasse para começar aqui. Coquetel de uma construtora, nossa amiga pediatra precisava levar convidados para ganhar bônus de desconto no apartamento que queria comprar. Então lá fomos nós, um grupo de amigos e amigas que não se desgrudavam. Mesa farta, pães e queijos de todas as nacionalidades. Recepção rolando e Rose fica sabendo que o preço do "AP" que ela queria comprar tinha subido pelo menos vinte por cento, além da proposta inicial; e que o número de amigos que ela levara não seria suficiente para ganhar o tal bônus. Você não teve dúvida, decidiu então que seria muito justo que ela levasse uns pães e queijos como compensação. Segue a cena: Rose mantinha a bolsa dela - que não era pequena -, aberta e você jogava os toletes de queijos inteiros lá dentro. Na manhã seguinte fizemos a alegria do café da manhã dos funcionários da Secretaria da Saúde com aqueles queijos deliciosos.

Esse sempre foi você, era leve com a vida, sempre arrumava uma solução para as coisas, mesmo as mais difíceis. Com certeza, tanta habilidade diante das mais exigentes situações, tem a ver com sua história, com tudo o que você precisou superar.

Com um ano e sete meses, foi acometido pela Poliomielite, numa época que só se tinha acesso ao tratamento no Hospital das Clínicas. Então, você e sua mãe viajavam de Itapetininga, terra de seu nascimento, até São Paulo. Contava, cheia de orgulho, minha querida sogra D. Olga, que por anos, você enfrentou o tratamento com muita coragem.

Correu outro sério risco de vida aos cinco anos, quando teve apendicite e lá foram vocês de volta ao HC. Mas você sobreviveu, e após a cirurgia, comunicou ao médico que cuidava de você, que também seria médico. Decisão tomada aos cinco anos de idade, que o levou de volta àquele hospital, em 1971, como estudante da Faculdade de Medicina da USP.

Em 1977, formou-se médico e três anos depois finalizava a residência em Anestesiologia, especialidade que escolheu. Desde então, seguiu cumprindo com dedicação, amor e competência o juramento que fez, cuidando e salvando vidas por quarenta e três anos.

Foi o primeiro médico do Hospital Municipal de Americana. Lembro de te dizer uma vez, que o Centro Cirúrgico devia ter seu nome, que seria muito justo, porque foi você quem o organizou. E você respondeu com seu jeito simples e brincalhão de levar a vida: “Ah Cris, para quê isso? Deixa isso para lá, você vai ver, quando eu for Presidente do Brasil, eles colocam a placa lá no Centro Cirúrgico.”, e ríamos com gosto.

Foram quarenta anos de dedicação ao SUS. De médico de UBS, Anestesiologista Chefe do Departamento de Anestesiologia, a Diretor Clínico do Hospital Municipal, em várias gestões. Eu sei, é verdade, a gente sempre tinha aquela discussão básica antes de você assumir esses cargos de chefia. Eu era contra, porque seu trabalho dobrava. Mas acaba aceitando por conta do brilho dos seus olhos, provocado, não pelos títulos ou cargos, mas pelo amor que você sempre teve por aquele hospital.

Ah.... Tá bom vou contar. Você era médico de uma das UBS, quando eu era a gestora da Atenção Básica. Então cheguei um dia lá na Unidade e encontrei um bolo dentro da geladeira de vacina - que você tinha ganhado de uma das senhorinhas do território, que era sua paciente. Então discutimos, porque você não queria tirar o bolo da geladeira, mas acabou tirando. Meses depois, o Secretário de Saúde, decidiu que os especialistas do hospital municipal não poderiam mais atuar como clínicos nas UBS, eu tive que demitir você, e você falava aos quatro ventos, que tinha sido demitido por mim, por conta do bolo na geladeira de vacina. E, mais uma vezes, ríamos das coisas simples da vida.

A Medicina era mesmo sua grande paixão, você tinha outras, eu sei. Mas a sala de nossa casa sempre foi a prova de que ser médico estava no topo da lista. A sala virava consultório quando você não estava de plantão, e eu era a sua assistente. Jamais escutei uma reclamação sua, por ter que interromper nossos jantares, para atender alguém que o procurava aqui na nossa casa com alguma dor. Como pagamento recebíamos desde bolos, galinhas caipiras e, até cabritos. Ninguém que precisasse de você, ficava sem resposta, sem atendimento. Independente do dia ou hora.

Quando a pandemia começou, eu e Maíra tivemos uma conversa séria com você, pedindo que se afastasse do trabalho. Você foi enfático: “Sou médico e médicos enfrentam as doenças e não fogem delas. E tem outra coisa, não vou abandonar minha equipe num momento desses.”

Lembro de você me contando um episódio, com uma médica recém-formada: a moça estava com dificuldades para intubar um paciente, numa emergência da ala do COVID, então o chamaram. E você, cheio de entusiasmo, me descreveu a cena de como ensinou a jovem médica a fazer o procedimento.

Não abandonou mesmo. Seguiu trabalhando com alegria e orgulho da profissão, salvando vidas. Até que em novembro de 2020 se contaminou com esse vírus avassalador e, apesar de você lutar bravamente por trinta dias, o vírus tirou a sua vida; e deixou a minha, a de nossos filhos, a de nossa família, de seus irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas, sobrinhos e sobrinhas, a de seus amigos e amigas, numa imensa tristeza. Estamos em julho de 2021, e já são seis meses sem você.

Pescar estava em segundo lugar na lista de suas paixões, seus irmãos Daniel e Afonso, e seu amigo Pastel são testemunhas, eram seus companheiros de pescaria. Por isso boa parte da infância da Maíra e da adolescência do Gabriel e Felipe, nossos finais de semana eram no Rancho em Pirassununga. Fazíamos as malas, juntávamos filhos, gato, cachorras e papagaio e para lá partíamos. Não tínhamos gatos, nem papagaio - essa parte eu exagerei mesmo. Só a nossa cachorra Mel, naquela época. Mas, logo depois chegaram a Hanna, a Nanda, a Flora, a Luz e a Julieta. E depois ainda, o Guto e o Thor. Sim, sempre tivemos muitos cachorros aqui em casa. Outra grande paixão sua, compartilhada com nossa filha, que também escolheu ser médica, só que veterinária.

Foi pescando que você sofreu aquele grave acidente em 2013. Mais uma prova de resistência que a vida lhe aplicava. Mais uma cirurgia, pinos e placa na mesma perna acometida pela poliomielite. Um ano de afastamento do trabalho. E, como sempre, você foi gigante: voltou a andar, a trabalhar, a cozinhar, a fazer tudo o que sempre fazia com tanta alegria.

Por falar em cozinhar, eu sei que você sabe que o Gabriel continua cuidando dos nossos almoços de domingo aqui em casa. Arnaldo, o "namorido" da Maíra, ajuda nessa tarefa. Juliana, a "namorida" do Gabriel, me ajuda com a louça. Felipe e Gabriele continuam sem vir muito aqui em casa por causa da Pandemia. Nossos filhos tiveram o melhor pai desse mundo. Por isso, apesar da imensa saudade que sentem, seguem fortes, como aprenderam com você. E sim! Gabriel e Maíra continuam discutindo por quase tudo, mas não se desgrudam. Nenhum de nós nunca vai se desgrudar, você sabe disso. Conhece bem a família que formamos.

Família estranha, a ponto de causar confusão no cartório quando a Dorinha se casou com o Richard. Tá bom! Vou contar também. Casamento da sua ex-esposa Dorinha - mãe dos nossos dois filhos mais velhos, Gabriel e Felipe -, com o Richard, cidadão inglês. O Juiz do cartório pede para os padrinhos assinarem o livro, no caso, eu e você, e pergunta “o que éramos dos noivos?”. Você responde: “Eu fui marido da noiva e essa aqui é minha atual esposa”. Ah... A cara do Juiz foi demais, impagável! E, também dessa vez, rimos da beleza das alegrias da vida.

Conseguimos isso, constituir essa família da qual nos orgulhamos tanto. Você, eu, nossos filhos Gabriel, Felipe e Maíra. Dorinha e Richard. Você sabe a falta imensa que nos faz. Mas seguimos cuidando uns dos outros, juntos para o que der e vier.

Quanto a mim, uma parte minha se foi com você. Mas, com a parte que sobrou, tenho lutado muito, me esforçado para cumprir com a promessa que fiz a você. Estou cuidando de seu legado de amor, de nossa família, como você sempre fez. Dessa história linda, única e intensa que vivemos juntos. Da nossa história de amor, pela qual serei eternamente grata.

Essa sua Andorinha Sinhá, será sempre mais triste agora que ficou sem você, meu Gato Malhado, companheiro de uma vida, e para sempre, meu grande amor.

Cristina Marcondes

-
Paulo, ou meramente o Boró. O marido, amigo, colega de trabalho, médico, companheiro do Pastel e do bar do Juva, dos domingos campestres, enfim o PAI!

"Por mais que você ocupasse muitos e importantes papéis na vida das pessoas, esse foi sem dúvida o seu melhor ofício, realizado com maestria: ser pai, o nosso pai! Eu e meus irmãos tivemos a sorte de ter partilhado essa vivência ao seu lado", descreve amorosamente Maíra.

A caçula dos três filhos de Boró: Gabriel, Felipe e Maira segue seu relato saudoso em uma carta aberta ao querido pai:

"Você sempre dizia que criava os filhos para o mundo, que tínhamos que 'dar nossas cabeçadas e tudo bem'. Afinal, a gente sempre tinha para quem voltar, não é mesmo? Você - nosso Porto Seguro!

Pai, você nos ensinou tanto a sermos pessoas boas e nos divertirmos com coisas simples, como nossos almoços de domingo. Lembro da sua ligação às seis da manhã e chego a ouvir sua voz, chamando para um churrasquinho.

Aprendemos com você também, que o melhor da vida é compartilhar nossos momentos com aqueles que amamos. Nos ensinou a congelar, claro! Congelar tudo, não importava o que sobrasse. Você dizia: "congela, mesmo que seja um Tucupi de quinze anos. Vai estar ótimo depois que descongelar. A sopa, se for na forma, melhor ainda!" Ai pai, quantas risadas dávamos juntos. Mas hoje, o que mais queríamos era poder congelar o tempo, só para ter você de volta.

Pai, você foi e sempre será o grande amor das nossas vidas. E não importa onde, ou quando, sabemos que estará cuidando de nossa família, onde quer que esteja. Um dia a gente se encontra, tenho certeza disso.

Saudades eternas, de seus filhos, Maíra, Felipe e Gabriel, de sua esposa Cristina e das cachorras que morrem de saudade de você."

Paulo nasceu em Itapetininga (SP) e faleceu em Americana (SP), aos 70 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa de Paulo, Cristina Marcondes. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ana Macarini, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 7 de julho de 2021.