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Pedro Martins Borges

1931 - 2020

Gostava de contar que foi em um ônibus de viagem que buscou a esposa e a filha caçula na maternidade.

Quilômetros e mais quilômetros marcaram a vida de Pedro ao longo de décadas. À frente do volante, o trabalho como motorista profissional sempre foi o sustento da família numerosa. Junto com dona Judith, criou os oito filhos – Neusa, Nelson, Neide, Nildo, Nivaldo, Nilce, Neuci e Gislene –, que lhe deram 15 netos e sete bisnetos. Da labuta na roça quando recém-casado, Pedrão – apelido que ganhou entre os colegas e sempre carregou por aí – partiu para o trabalho na boleia do caminhão ainda jovem, com transporte de cargas para todos os cantos do Brasil. Até levar madeira para a construção de Brasília ele foi. Passava longas temporadas longe de casa e só voltava com algum dinheiro no bolso para alimentar as bocas e os coraçõezinhos saudosos que o aguardavam ansiosos. “Ele não estava necessariamente presente, mas sentíamos sempre perto de nós. Foi muito dedicado aos filhos”, emociona-se Gislene, a mais nova da prole.

De andança em andança a família também foi mudando de cidade, “tanto que cada filho praticamente nasceu num local diferente, emendando o interior de São Paulo com o interior do Paraná”, ela conta.

A experiência na estrada o levou para conduzir ônibus de excursão, em viagens que lhe renderam muitos conhecidos, graças ao seu jeito alegre e falante. Vira e mexe retornava para casa com alguma foto tirada pelos tantos passageiros que ajudou a embarcar e desembarcar nos passeios turísticos. Gislene relembra que, das muitas viagens, a preferida dele foi para Foz do Iguaçu (PR). Ela ainda rememora com graça um fato inusitado: “ao final de um desses trajetos, meu pai foi surpreendido com meu nascimento e teve que parar com o ônibus na porta da maternidade para buscar esposa e filha recém-nascida. Ele não cansava de repetir essa história”.

A mudança do interior para a capital paulista, já com a família formada, introduziu a Kombi na trajetória de Pedro. Ela tornou-se a companheira diária para a venda de frutas de porta em porta pelas ruas de São Paulo. Saía de madrugada para repor o estoque no Ceasa e depois, a cada jornada, os filhos o ajudavam a abastecer sua Kombi vermelha com as caixas cheias.

O progresso financeiro veio quando Pedro decidiu ser motorista particular. Conseguiu comprar terreno e construir a casa própria. De tão habilidoso e engenhoso que era, ele mesmo desenhou a planta do imóvel e arregaçou as mangas para pôr de pé o sonho antigo de sair do aluguel. “Era orgulhoso por ter feito o projeto sozinho”, afirma a filha.

Ao longo do tempo, a casa ainda abrigou as reuniões da família que só cresceu. Pedrão e dona Judith até já haviam se separado, mas as festas com os filhos e outros parentes os mantinham por perto. Ele adorava ouvir e cantarolar as modinhas da música sertaneja de raiz ao som de viola. O ritmo também não saía do seu pequeno rádio de pilha, ‘parceiro’ inseparável no vaivém pelas rodovias. De tanto que gostava, as canções ficaram na memória, mesmo após ser afetada pelo Alzheimer que o alcançou com a idade. O neto Gabriel gravava as músicas em pen drive para que o avô cantasse durante as visitas de Gislene na casa de repouso onde era cuidado.

Enquanto sua carteira de habilitação tivesse validade, Pedro insistia em ser motorista. Dirigiu para um clube na capital e para o transporte escolar em outra cidade vizinha. Mas em Ibiúna (SP) tinha escolhido realizar o desejo de adquirir uma chácara, onde construiu um chalé, andou de buggy com os netos e usufruiu do tempo livre depois de tirar definitivamente o pé do acelerador. Pelo prazer do contato com a terra, fez um lago, plantou, cultivou bananeiras. Elegeu esse seu lugar favorito. Também o fizeram os filhos para depositar suas cinzas.

Ao seu lado no hospital, “quando perguntou quem eu era, seu olho brilhou, não sei se me reconheceu, mas tenho certeza de que sabia estar com alguém que o amava”, Gislene fala emocionada. “Pude declarar o que não era habitual: ‘eu te amo’".

Pedro nasceu em Quatá (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 89 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Pedro, Gislene Martins Alves. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Fabiana Colturato Aidar, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 12 de maio de 2021.