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Peterson Barros Gomes

1978 - 2021

Com a bela voz — grave e forte — ele fez da música uma companheira inseparável e imprescindível na sala de aula.

Esta história é um retrato da vida intensa, amorosa, repleta de fé e de música experimentada por Peterson. O retrato de um homem alto, de rosto manso e feliz, de cabelos grandes, de voz forte e dono de um sorriso negro sempre nos lábios; de um “amigo eterno”, que foi nascendo enquanto trabalhava como professor de ensino religioso em escolas católicas de Belo Horizonte, Minas Gerais; de alguém “que era só bondade” e desde menino sabia o que é o amor.

Filho de Marcos e Áurea - o mais velho -, ganhou também os irmãos e companheiros Maguinho e Priscila. Desde muito cedo, esperto e cheio de energia, o menino lutava jiu-jitsu. Já na infância, sua maneira de ver o mundo estava marcada por um olhar atento e sensível. Peterson era um admirador do cotidiano e, via de regra, encantava-se com as cores, sabores e sons que estavam ao redor.

Nascido em Venda Nova, um bairro popular da capital mineira, ele cresceu brincando nas ruas, frequentou escolas públicas e, no meio do caminho, ia fazendo companheiros de jornada. Como rememora o amigo, e também professor, Eduardo. Peterson “cresceu em meio às muitas amizades e familiares, pelos quais sempre teve extremo carinho e orgulho”.

Um lugar especial no coração de Peterson foi reservado para sua parceira de vida, Alessandra. Graças ao enorme carinho que sentia por sua futura esposa, aos poucos ela virou Leca. Juntos plantaram sonhos, dividiram alegrias, esperanças e desafios. O amigo Eduardo conta que “tornaram-se apoio, segurança e confiança um para o outro”. O casamento foi em 2008, consolidando tempo e espaço para que construíssem uma vida de dedicação e entrega aos familiares. O casal ocupou assim o lugar de guardiões dos irmãos e foi uma presença muito significativa na vida dos sobrinhos, bem como apoio para os pais.

A amiga Patrícia ficou emocionada com a possibilidade de homenagear “um ser humano diferenciado, ímpar e muito especial”. Inesquecível o primeiro encontro, que aconteceu no Colégio Imaculada Conceição. Quando ainda era estudante de Pedagogia, Patrícia chegou à escola e, no desconforto da primeira experiência escolar, teve em Peterson o primeiro acolhimento. Com seu jeito afetuoso e acolhedor ele foi até ela para dar as boas-vindas. Depois veio um bom tempo de convivência e aprendizado, uma vez que, durante o estágio, Patrícia acompanhou as aulas de Peterson. Desde o primeiro contato, chamou a atenção de Patrícia a dedicação dele ao trabalho de ensino religioso, bem como a atenção para a inclusão de estudantes portadores de necessidades especiais.

As bases para que Peterson escolhesse atuar no ensino religioso vieram bem antes disso. Inicialmente, com a formação que recebeu de seus pais, Dona Áurea e Seu Marcos. Ao longo do tempo, pelas muitas vivências comunitárias de fé, que consolidaram a formação católica. Um pouco mais tarde, nos estudos de pedagogia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, foi ganhando espaço e força a sua vontade de atuar como professor de ensino religioso. Os estudos de Ciências da Religião, na PUC, foram outra etapa.

Com todas essas notas registradas na partitura de sua vida, Peterson resolveu levar tudo isso para a sala de aula. Como ressalta o amigo Eduardo, “inteligente, determinado e sensível, dono de um caráter irreparável, criativo, comunicativo, de coração grande e generoso, onde morava uma bondade gigante”, lá foi ele. E o que se passou é de se guardar.

O primeiro emprego foi numa escola próxima de casa. Fez também alguns estágios antes de conhecer e trabalhar com as Filhas de Jesus através da Obra Social São José Operário.

As aulas do Tio Pet — maneira carinhosa como os alunos se referiam a ele — eram espaço para diversos assuntos. Com as turmas do oitavo ano do Ensino Fundamental, por exemplo, havia momento para pensar na carreira profissional. Empático, Peterson percebia que nesta idade os estudantes tinham essa questão muito presente. E juntamente com a Coordenação criou o Projeto de Vida. Assim, durante uma parte do ano letivo, aconteciam debates que ajudavam os estudantes a pensarem sobre qual profissão escolher futuramente.

Como membro da equipe de Pastoral do Colégio, Peterson também frequentava as salas para reflexões sobre a palavra de Deus. No tempo da Páscoa, ele vestia uma túnica e circulava pelas salas da educação infantil refletindo sobre o sentido do “renascimento da Páscoa”, conta Patrícia.

No cotidiano da sala dos professores, era comum que compartilhasse com os colegas um pão com ervas preparado pela esposa Alessandra. Na roda da mesa, nos momentos de intervalo, Peterson conversava com todo mundo e alegrava o ambiente.

Patrícia recupera a maneira atenta e acolhedora do amigo. “Ele conhecia as pessoas pelo olhar. Se percebia que alguém não estava bem, fazia de tudo para ver a pessoa em paz”, explica Patrícia. Numas situações, usando sua habilidade com as palavras, acolhia o sentimento transmitido pelo olhar com frases inspiradoras. Noutros momentos, bastava o abraço afetuoso e silencioso de Peterson para que o astral das pessoas mudasse.

Não dá para deixar de relembrar o ar de sorriso que ele sempre trazia em seu rosto. E quando de fato sorria, era um sorriso largo emoldurado por seus lábios bem definidos. Em cerca de sete anos de convivência, Patrícia diz não se lembrar de nenhum momento em que tenha encontrado Peterson com fisionomia fechada e triste.

Graças a esse repertório, ao longo do tempo, Peterson foi ganhando a confiança e cumplicidade dos estudantes. Era comum que alguns deles procurassem o Tio Pet quando precisavam de algum conselho ou quando não estavam bem. E neste movimento, estudantes que se formavam seguiam como amigos de Peterson. Frequentemente era ele o padrinho dos formandos das turmas de terceiro ano do Ensino Médio. Toda a importância do educador na vida dos estudantes ficou evidente quando, infelizmente, ele não resistiu ao contágio da Covid-19. Num momento de aulas à distância, a comoção foi geral e ficou evidente o carinho e gratidão dos estudantes para com ele.

Uma das marcas de Peterson estava na maneira como pedia e conseguia silêncio em sala de aula. Era um gesto que demonstra a construção de parceria e cumplicidade ao longo do ano letivo com os estudantes. Como já foi dito, Tio Pet era uma pessoa de boa estatura. Nos momentos de dispersão dos estudantes ele levantava o braço direito com a mão espalmada para depois fechá-la quando estava acima da cabeça. Um gesto simples, mas a turma sabia que era hora de prestar atenção.

Com a equipe do colégio não era diferente. Sempre com um ar de sorriso no rosto, ele “tratava a todos de forma igual. Não distinguia professor de estagiário, diretor e coordenadores de funcionários da limpeza” ressalta Patrícia. Se captasse algo de diferente no olhar de alguém, estava sempre aberto a estar junto e ceder tempo para uma conversa. Foi assim que entre os professores colecionou amigos como Patrícia Santos e Eduardo Machado, que contribuíram com a produção desta homenagem, bem como Cássia Lara e Laura Suvalski, que certamente teriam muito a dizer sobre ele.

Entre as memórias mais preciosas de Patrícia está a forma carinhosa como sua filha Sthefanie foi acolhida por Peterson. Ela precisava realizar algumas entrevistas com jovens para realizar um trabalho da disciplina de Filosofia. Em uma tarde e durante um lanche oferecido por Peterson, Sthefanie pode conversar com os estudantes do Ensino Médio. Depois da conversa, sabendo da inclinação da moça pela área de química, fez questão de levá-la ao laboratório da disciplina da escola. Um tempo depois, quando ela foi aprovada no vestibular para Química, Peterson, em uma postagem na rede social, escreveu que “pelo brilho que percebia no seu olhar, sabia, desde a primeira vez que te vi, que você conseguiria o que queria”.

Impossível falar de Peterson sem dizer sobre sua relação com a música. Ao longo de toda a vida, a musicalidade esteve presente por meio de sua família. Nos encontros e amizades que a vida proporcionou, pouco a pouco encontrou um caminho que o levaria mais tarde a formar algumas bandas de rock, como a Holy Spirit, a Rock Inconfidentes e a Jamp, dentre outras. Como ressalta o amigo Eduardo, Peterson foi “o mentor e a alma” das bandas.

O cabelo grande sempre bem cuidado, roupas pretas e alguns adereços que usava combinavam com seu gosto pelo rock. Uma das bandas que ajudou a formar prestou uma homenagem a ele em sua Missa da Ressureição. Apesar de ter acontecido de forma virtual, o momento foi tão contagiante e intenso que o padre celebrante fez questão de comentar que “através da energia da música” Peterson estava presente naquele momento na igreja de onde era celebrado o rito.

“A música foi uma companheira inseparável e imprescindível em seu trabalho como professor, catequista e pastoralista", frisa Eduardo. Ele tocava — e muito bem — violão, piano e guitarra. O certo é que a música se tornou uma dimensão cativante do professor Peterson que através de acordes e harmonias fazia da música instrumento educativo.

Dono de uma voz grave e potente, era capaz de preencher o espaço mesmo nos momentos em que cantava à capela, sem acompanhamento de um instrumento. No cotidiano escolar, ele cantava em diversas situações enchendo o ar de significativas melodias. No trabalho pedagógico, muitas vezes cantava músicas que introduziam o debate e a reflexão sobre algum tema. Noutras oportunidades, o violão e a voz marcavam momentos dos trabalhos de pastoral dos quais participava na escola e fora dela. Nas celebrações religiosas que aconteciam no colégio era quase obrigatório que ele cantasse a música “Sonda-me”. Agradecida, Patrícia guarda em seu coração os muitos momentos em que Peterson cantava a canção. Com tanta beleza e sentimento que era impossível não se emocionar e entrar em estado de oração. “Quando o momento estava chegando ao fim e ele ainda não tinha cantado essa música, alguém sempre pedia que cantasse” acrescenta Patrícia. Nas confraternizações, cantava músicas populares brasileiras, alegrando o ambiente.

Peterson sempre acreditou na dimensão do sacramento na vida das pessoas. E depois de seu falecimento um fato repleto dessa dimensão sacramental e de um carinho indescritível aconteceu. Reconhecendo a importância dos amigos na vida do esposo, Alessandra presenteou o amigo Eduardo com o colete que ele usava em suas apresentações de rock. Agradecido e emocionado, o amigo decidiu que a partir daquele dia o colete ficaria descansando no encosto de sua cadeira de trabalho. “Todos os dias quando me sento, tenho a oportunidade de me sentir abraçado pelo Peterson, que está sempre aqui através do colete”, explica Eduardo. Na dimensão do sacramento, o colete é marca da amizade, das trocas como educadores e do lugar de filho que Peterson foi ganhando na vida de Eduardo.

Peterson segue vivo na energia do rock das bandas que ajudou a criar e seguem se apresentando por aí. Vive nas lembranças que Eduardo tem dele como “filho exemplar, irmão amoroso, esposo companheiro e dedicado, amigo acolhedor e imprescindível, professor carinhoso, competente, amado e músico de talento diferenciado”. Vivo também nos dias em que a amiga e educadora Patrícia percebe que algum estudante precisa de apoio e se lembra das palavras de Peterson alertando que “atrás de cada aluno tem um contexto. Olhar e buscar saber o que produz algum comportamento às vezes agressivo, às vezes disperso, pode fazer a diferença”.

Peterson nasceu em Belo Horizonte (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG), aos 43 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelos amigos de Peterson, Patrícia Jaqueline Silva Santos e Eduardo Machado. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 29 de maio de 2023.